Do livro *Cantigas de Maldizer* de 1942
Na quadra de maldizer
Cabe tudo sem questão
Assim pudesse caber
O mundo na minha mão
Não cuides fazer-me agravo
Com tuas má-criações
Pinhas de pinheiro bravo
Nunca podem dar pinhões
Com separação de bens
Casou-se a minha vizinha
Ele tinha alguns vinténs
Mas, ela, nem isso tinha
Lembras-me, quando te vejo
As sardinheiras em flor
Fazes nascer o desejo
Mas não despertas amor
Pois se tu foste beijada
Para que estás a negar?
Depois da carta jogada
Não se deve levantar
Atirei com três conchinhas
Para o quintal do meu bem
Levavam saudades minhas
Que ela deu não sei a quem
O luxo que te seduz
É qu’há-de ser o teu mal
A vela, para dar luz
Não precisa castiçal
Teu marido não te engana
Eu, nessas coisas, distingo
Quem trabalha uma semana
Precisa do seu domingo
Julga-se bela… não nego
Ilusões, ninguém destrua
Não custa ajudar um cego
A atravessar uma rua
De beijos não tenhas pressa
Faz ver ao teu namorado
Que um prédio não se começa
A fazer pelo telhado
Se tens outro, minha amiga
Eu desisto, por quem sois
Dois pardais na mesma espiga
Não come nenhum dos dois
Teu vestido não tem costas
Não tem nem precisa ter
Porque é assim que tu gostas
E eu também gosto de ver
O teu noivo foi-se embora?
Outro virá mais amigo:
À espinha que deito fora
O gato chama-lhe um figo
Fui à feira comprar gado
Voltei sem nada trazer
O que era do meu agrado
Não era para vender
Quando vás por água ao poço
Não faças lama no chão
Dá menos conversa ao moço
E, à bilha, mais atenção
Por mais que a negar se afoite
A mim não me engana ela
Que eu bem n’o vi, certa noite
Saltar da sua janela
O que eu por ti padeci
Eras o meu ai-Jesus
Agora fujo de ti
Como o diabo da Cruz
Certo editor com chalaça
Disse assim, noutro dia
Versos?!… se os desse, de graça
Pediam-me a demasia
Foi moda muito acertada
A dos sapatos de agora
Já ninguém diz: ó coitada
Anda c’os dedos de fora
Não te ponhas a bater
Meu coração! Não te iludas
Não me deites a perder
Que ele é falso como Judas
Nos livros e até no resto
A nossa contradição
É que a mim seduz-me o texto
E a ti a encadernação
Prova que tens coração
Dize que sim sem receio
Não teimes em dizer não
Porque ser teimosa, é feio
Dar a camisa era, outrora
Sinal de bom coração
Por isso é que elas agora
Só vestem combinação
A Glória? bem sei quem é
Conheço-a de tradição
Mora na Rua da Fé
E vive do que lhe dão
Sim! na quadra tudo cabe
Mas de que serve caber
Se há coisas que a gente sabe
Que não se podem dizer?