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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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História do Chico do Cachené

Este magnífico trabalho foi-me cedido pelo mestre 
DANIEL GOUVEIA
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Em 1945, Linhares Barbosa escreveu um «auto poético fadista» 
intitulado: O Julgamento do Chico do Cachené. 

Tudo começou quando um grupo de amigos, dos quais faziam parte 
o artista plástico e boémio D. Tomás José de Melo (Tom) 
Linhares Barbosa, saiu da Adega Machado 
após um animado almoço. 

Um ferro-velho ambulante expunha num carrinho várias bugigangas
onde Tom divisou um boneco de madeira, nu com meio metro 
de altura. 
Comprou-o, sob as piadas dos amigos, e levou-o consigo. 

Dias depois apareceu no Machado com o boneco vestido à «faia» 
de jaqueta, calça de boca-de-sino, bota «afiambrada», chapéu à banda
cache-nez de seda ao pescoço. 

Armando Machado pô-lo numa peanha, em local bem visível da casa 
e mestre Linhares batizou-o de «Chico do Cachené».

Mais uns tempos passados e o mesmo grupo divertia-se em
fazer comentários ao «Chico».

Uns acusando-o de ser um estroina, bêbado, sem ocupação 
senão a de estar na sua peanha a ouvir fados
vivendo à custa de uma mulher (a Micas).

Outros defendendo-o, alegando que tinha sido 
um desgosto de amor ele nem era mau rapaz, e por aí fora.

Então, Linhares Barbosa propôs fazer-lhe um julgamento 
em forma para o que escreveria os depoimentos da acusação 
da defesa, a sentença tudo em letras de fado a fim de ser 
cantado ali mesmo. 

Estreou-se este auto poético fadista em 28 de Julho de 1945
às 15h00, na Adega Machado. 

Foram intervenientes:
Maria de Lurdes Machado, Fernando Farinha, Natália dos Anjos
Maria de Castro, Jacinto Pereira e Gabino Ferreira
Acompanhados, à guitarra e à viola por 
António Henriques e Flávio Teixeira. 
O próprio Linhares desempenhou o papel de Juiz

Em 25 de Maio de 1948 foi de novo levado à cena, no Café Luso.

Depois, caiu no esquecimento, as letras perderam-se
havendo apenas excertos publicados na Guitarra de Portugal
n.º 5, de 15 de Agosto e 1945.

Encontradas, na íntegra, nos arquivos de Francisco Mendes 
foi o auto encenado por José Manuel Osório em 1999
sendo representado na mesma Adega Machado 
onde fora estreado, na Adega Mesquita, A Severa, Café Luso 
Clube de Fado, O Faia, O Timpanas, Restaurante Senhor Vinho
Sociedade A Voz do Operário e Taverna do Embuçado. 

No ano seguinte, subiu à cena no Grande Auditório 
do Centro Cultural de Belém. 

Foram intérpretes: 
Alice Pimenta, Maria Amélia Proença, Julieta Estrela, António Rocha 
Daniel Gouveia, Filipe Duarte e Hélder Moutinho
com acompanhamento de Carlos Fontes e João Chitas (guitarras)
Luís Costa (viola) e Pedro Morato (viola-baixo).
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Eis as letras, na sequência com que foram cantadas em 1999 e 2000

QUEM É O CHICO DO CACHENÉ

O "Chico do Cachené"
Tem sempre um grãozinho n’asa
É o Faia mais fadista
Que "habita" na minha casa


Com ele nunca houve tricas 
Nem intrigas, nem sarilhos
Gostam dele, e os meus dois filhos 
Tanto o Licas como o Tricas
Dizem que amou certa Micas 
Que poucos sabem quem é 
E que ela passou o pé 
Deixando quase no esquife
Num quarto do "Bairro Bife"
O "Chico do Cachené"

Sempre mãos nas algibeiras 
Sorriso sempre na "lata"
Na boca sempre a beata 
P'ra lhe dar "tic" às maneiras
Atira-se às cantadeiras 
E já marcou entrevista
A certa mulher bairrista 
Que a altas horas lá cai
Quem for com ele mal não vai
É o Faia mais Fadista

Dizem que aquele chapéu 
Que o cachené e a tralha
E que também a medalha 
Foi a Micas que lhe deu
Dês' que ela desapareceu 
P'ra se atolar mais na vasa
No peito dele, uma brasa 
Abrasa-lhe o coração
Pobre Faia. Desde então
Tem sempre um grãozinho n’asa

Outro dia, um badameco 
Armou por lá uma cena
Lá porque a sua pequena 
Estava a olhar p'ra o boneco"
Ele olhou o "Papo Seco" 
E nisto, o "pipi" foi d'asa
Com ele ninguém faz vasa 
E ainda mais o admiro
Porque é o tipo mais "giro"
Que "habita" na minha casa

O CHICO DO CACHENÉ


Certa vez, foi à noitinha 
O Chico do Cachené
Chamou-me e disse: «Farinha
Vou contar-te a vida minha 
Para saberes como é

Bem criado e mal fadado 
Os meus pais tinham de seu
Por eles era adorado 
Instruído e educado 
Cheguei a andar no liceu

Ao estudo tomei horror 
Era p’ra mim um suplício
Deixei aula e professor
Fui p’ra aprendiz de impressor
Para uma casa do ofício

Eu era menino e moço 
Simples como uma donzela
’Té que um dia – que alvoroço 
Fui à Travessa do Poço
Vi a Micas, gostei dela

A casa não voltei mais 
Meus pais tiveram desgosto
Calcula: deixei meus pais 
Preso nos olhos fatais 
Que a Micas tinha no rosto

Com ela aprendi o Fado 
O Fado a que te dedicas
Mas sempre, sempre empregado
Que, p’ra mim, era um pecado
Viver à custa da Micas

Vivi assim alguns anos 
Quatro vezes lhe pus casa
Mas o seus olhos tiranos
Vadios como dois ciganos 
Fugiam, batiam asa

Muita vez a fui buscar 
Às ruas do outro «fado»
Um dia, p’ra não voltar
Fugiu... É que o seu olhar 
Tinha que ser desgraçado

Hoje não tenho um afago 
Um carinho, uma afeição
Sou um esquecido, mal pago
É no vinho que eu apago 
O fogo desta paixão

Depois de contar-me a vida 
O Chico pôs-se de pé
Pediu mais uma bebida
E uma lágrima atrevida 
Caiu-lhe no cachené

A MICAS ERA UMA JÓIA

Todos cantam a odisseia 
Do Chico, com simpatia
Mas ninguém diz que, ao velhaco
Quando estava na cadeia 
Era a Micas quem lá ia
levar onças de tabaco

Não vivia à custa dela 
Não fazia dela escrava
Louvo-lhe esses sentimentos
Mas muita, muita farpela 
Era a Micas que a comprava
Numa loja, a pagamentos

A Micas era uma joia 
Leviana, sim, talvez
No fundo, uma desgraçada
Certa vez, numa ramboia 
Por nada que ela lhe fez
Ele moeu-a à pancada

Resultou, dessa tareia 
Da forma de a agredir
O ser preso... e até se diz:
Só esteve um mês na cadeia 
Porque a Micas foi pedir
por ele, ao Doutor Juiz

Também se deu um sarilho
Muito grande, entre ela e ele:
A mãe dela mo contou 
A Micas tivera um filho 
Um filhinho que era dele
E que ele não perfilhou

Não vim para a defender 
Nem levantar-lhe degrau
No trono das desgraçadas
Mas costuma-se dizer 
Que quando cachorro é mau
Todos lhe atiram pedradas

BÊBADO, BATOTEIRO E DESORDEIRO


Ele ganhava um quartinho
Era sempre o que ganhava
Mas gastava tudo em vinho!
E às vezes não lhe chegava


Conheci-o, meus senhores 
De "setenta", de "ginjeira"
Numa banca pataqueira 
Ali p'ra os Restauradores
Como tod'os jogadores 
Andava sempre a caminho
Da tavolagem, pró "pinho" 
Sempre a pedir emprestado
Mas não era precisado
Ele ganhava um quartinho

Entrou na Dança da Bica 
Lembro-me, era eu criança
Fez com que acabasse a dança 
E foi parar à Botica
Uma outra vez, em Benfica 
Em que o Brito improvisava
Ameaçou quem lá estava 
E desafiou uns poucos
Por fim, apanhou dois socos
Era sempre o que ganhava

A Micas gostava dele 
Chamava-lhe o "seu menino"
Sei que lhe deu um varino 
Com uma gola de pele
Deu-lhe um relógio, um anel 
'Té o próprio "pianinho"
Em que tocava o fadinho 
Ela lho dera também
O Chico ganhava bem
Mas gastava tudo em vinho

O "Chico do Cachené" 
É tatuado no peito
Prestou-se a isso o sujeito 
Quando esteve em S. José
Se isto é verdade, ou não é 
Não sei: era o que constava
A "massa" que lhe emprestava 
O Samuel agiota
Era toda prá batota
E às vezes, não lhe chegava

AS MÁS COMPANHIAS


O Chico fez tropelias
E deu aborrecimentos
Só devido às companhias
E não aos seus sentimentos


Cantava o Fado, era faia 
Bebia, jogava à chapa
Mas sempre vestia capa 
Pelo círio da Atalaia
A Micas era da laia 
Das que fazem judiarias
Duma vez andou dez dias 
Afastada do cortiço
Como não gostava disso
O Chico fez tropelias

Certa vez que o Chico foi 
Às toirinhas em Palmela
Era ouvir o grito dela 
O meu Chico hoje é um boi
Sou mulher, Deus me perdoe 
Que este e outros argumentos
Venham a ser elementos 
P’ra quem o Chico processa
A Micas era má peça
E deu aborrecimentos

Numa certa terça-feira 
Foram ambos para a esquadra
Porque na Feira da Ladra 
Ela armou em desordeira
Fora que a Júlia Cesteira 
Adela nas Olarias
E dava ali os «bons-dias» 
Pisou a saia da Micas
O Chico meteu-se em tricas
Só devido às companhias

Outra vez, p’lo Carnaval 
Foram ao baile à Trindade
Pois diga-se à puridade
Que ambos não dançavam mal
Um guarda municipal 
Disse dois atrevimentos
O Chico deu-lhe dois «tentos» 
E tudo isto presume
Que levou tudo ao ciúme
E não aos seus sentimentos

BOÉMIO, VALENTE E ARTISTA

Vingava a honra ofendida
Tinha uma alma altruísta
Antes do Fado ser Arte
Já a Chico era um Artista


Certo "Amigo de Peniche” 
Que ele julgava uma jóia
Viu-o ele de tipóia 
Com a Micas, em Carriche
Viu-os, aguentou-se fixe 
Mas não gostou da partida
Depois, 'spancou a atrevida 
E o amigo de má-fé
Era assim o «Cachené»
Vingava a honra ofendida

Teve amigos verdadeiros 
Escritores e doutores
Tu cá, tu lá, com atores 
Tu lá, tu cá, com toureiros
Deu-se até com Conselheiros 
E com muito Jornalista
Foi o melhor "Cancanista" 
Do Baile dos Quintalinhos
E, entre vários pergaminhos
Tinha uma alma altruísta

Em noites de S. João 
Passava noites inteiras
Dançando valsas rasteiras 
Mazurcas, Polca a Tacão
Palhinhas e jaquetão 
Calça branca, ou de zuarte
Nas feiras, por toda a parte 
Com titulares, com ciganos
Passou-se isto há trinta anos
Antes do Fado ser Arte

Jogava o Pau e à Espada / Em qualquer jogo, era rijo
Uma tarde, no Montijo / Varreu a Vila à paulada
Em muita espera e toirada / Deixou a perder de vista
Muito forcado burlista / E, nos sectores da "Canção"
'Inda não davam cartão
Já o Chico era um Artista

SENTENÇA

O Chico do Cachené 
Já todos sabem quem é
É um boneco inocente
Sem gestos, sem atitudes 
Sem defeitos, sem virtudes
Um boneco, simplesmente

Concebido e modelado 
P’la nossa imaginação
Com barro de fantasia
É um sopro do passado 
Um pouco de tradição
De sonho e de poesia

Criámo-lo à nossa imagem 
Com mais ou menos verdade
Somos os seus criadores
Rendemos-lhe vassalagem 
Porque fala de saudade
E até dos nossos amores

Pretendemo-lo julgar
Vimos que ele era, porém
Filho do meio ambiente
E que era um caso vulgar
Era um tudo de ninguém
Um nada de toda a gente

Ninguém com certeza ignora 
Que estivemos evocando
A tradição, o passado
Bendita esta «Boa-Hora» 
Onde estivemos brincando
Com as guitarras e o Fado

Não se provou a má fé 
Nos pecados do arguido
Que as paixões não nos iludam
O Chico do Cachené 
Está, portanto, absolvido
«Leis do Fado não se mudam»

Linhares Barbosa ainda escreveu mais uma letra 
sobre o «Chico do Cachené» para o cartaz que anunciava 
a representação de 1948 no Café Luso, intitulada 
"Alguns Comentários" onde fazia a apresentação do elenco 
e onde se vê que alguns dos fadistas e instrumentistas 
da primeira representação foram substituídos:

LEIS DO FADO NÃO SE MUDAM
(Bocage)

O Chico, mais uma vez
Foi preso e vai ser julgado
«Leis do Fado não se mudam»
Reza um antigo ditado


Cumprindo das leis o uso 
O Chico vai a Juízo
Porque o juízo é preciso 
E o Chico ao juízo é escuso
Vai ser julgado no «Luso» 
Lá para o fim deste mês
Será punido?... Talvez! 
Esperemos que a Justiça fale
Enfim, vai a tribunal
O Chico, mais uma vez

Já anda metendo cunhas 
Para não ser condenado
Mas não leva um advogado 
Um daqueles que tem «unhas»
Conhecem-se a testemunhas 
É tudo gente do Fado
Vai a Lourdes do Machado 
O Farinha, o Gabino
Pobre faia!... É o destino!
Foi preso e vai ser julgado

Vai o Jacinto Pereira 
Que o deseja ver na montra
E também vai depor contra 
A Natália, a galinheira
A Márcia, outra cantadeira 
Vai pedir que ao Chico acudam
Mas estas coisas não grudam 
Nem convencem os jurados
O Chico tem seus pecados.
«Leis do Fado não se mudam»

Sempre metido na «Adega 
Do Machado», o infeliz
Comia e bebia a «giz» 
E apanhava a sua cega
O Flávio, este não sossega 
O Amando anda enervado
O Nery, vai estar ao lado 
Do Chico do Cachené
O que nos salva é a Fé
Reza um antigo ditado