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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.280' LETRAS <> 3.120.500 VISITAS * MARÇO 2024 *

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A soleira da porta

Carlos Conde / João Maria dos Anjos
Repertório de Daniel Gouveia 

Passei hoje mesmo, à beira
Daquela antiga soleira
Da Travessa dos Quartéis
Que era entrada de uma tasca
Onde o fado, mesmo rasca
Criou nomes e deu leis

Taberna reles, banal 
Mas lá dentro, no quintal
Cheiro a iscas, pão e vinho
Dois varais de traquitana 
O poço, o musgo, a roldana
E em volta, mesas de pinho

Da Baixa à Rua do Cabo 
As tipóias do Zé Nabo
Andavam sempre em despique
E às tantas da madrugada 
Inda o fado em desgarrada
Se ouvia em Campo de Ourique

Um faia antigo e de nome 
Foi lá comigo e mostrou-me
Como sombra do passado
Uma soleira velhinha 
Um quintal de erva daninha
E um tapume abandonado

Não sou do tempo da tasca 
Onde o fado, mesmo rasca
Criou nomes e deu leis
Mas quase chorei, à beira 
Daquela antiga soleira
Da Travessa dos Quartéis

Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

A letra seguinte, A Soleira da Porta, poderia ser um paradigma de Carlos Conde. 
Repare-se no equilíbrio da descrição, cumprindo as regras do conto, género literário 
bem difícil de nele se atingir a excelência, apesar da aparente simplicidade. 
Não é por ser curto que o conto se torna fácil. 
Pelo contrário, tal como na quadra popular, é pela condensação do efeito de provocar emoções 
no leitor e daí, pela necessidade de uma estrutura rigorosa, que o bom conto se torna raro. 
Ora, todas as qualidades necessárias a um conto irrepreensível estão reunidas nesta letra.

Começa por introduzir o leitor/ouvinte na acção e apresentar o cenário em que ela decorre. 
Passa ao desenvolvimento dessa mesma acção, descrevendo-a como um observador externo. 
A seguir, introduz o elemento de surpresa ao revelar-se testemunha directa num tempo posterior
mas no mesmo cenário, passando da evocação para o tempo real, técnica cinematográfica
por excelência (flash-back). Finalmente, encerra retomando os versos iniciais, em perfeita 
simetria formal declarando uma emoção que, exatamente pelo tom confessional, se transmite 
ao leitor/ouvinte com toda a intensidade. 
É a «chave de ouro» com que um bom conto deve terminar.
A terminologia é deliciosamente adequada ao imaginário fadístico castiço, na vertente 
incensadora dos «tempos que já lá vão», eficaz, objectiva, sem falar de qualidades 
ou sentimentos humanos, salvo quando o «quase chorei» nos alerta para que todos aqueles 
objectos inanimados tinham um altíssimo significado emotivo.
Diríamos que estes são Fados de arquitectura perfeita.