Repertório
de Daniel Gouveia
Passei
hoje mesmo, à beira
Daquela
antiga soleira
Da
Travessa dos Quartéis
Que
era entrada de uma tasca
Onde
o fado, mesmo rasca
Criou
nomes e deu leis
Taberna
reles, banal
Mas
lá dentro, no quintal
Cheiro
a iscas, pão e vinho
Dois
varais de traquitana
O
poço, o musgo, a roldana
E
em volta, mesas de pinho
Da
Baixa à Rua do Cabo
As
tipóias do Zé Nabo
Andavam
sempre em despique
E
às tantas da madrugada
Inda
o fado em desgarrada
Se
ouvia em Campo de Ourique
Um
faia antigo e de nome
Foi
lá comigo e mostrou-me
Como
sombra do passado
Uma
soleira velhinha
Um
quintal de erva daninha
E
um tapume abandonado
Não
sou do tempo da tasca
Onde
o fado, mesmo rasca
Criou
nomes e deu leis
Mas
quase chorei, à beira
Daquela
antiga soleira
Da
Travessa dos Quartéis
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*
A letra seguinte, A Soleira da Porta, poderia ser um paradigma de Carlos Conde.
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*
A letra seguinte, A Soleira da Porta, poderia ser um paradigma de Carlos Conde.
Repare-se no equilíbrio da descrição, cumprindo as regras do conto, género literário
bem difícil de nele se atingir a excelência, apesar da aparente simplicidade.
Não é por ser curto que o conto se torna fácil.
Pelo contrário, tal como na quadra popular, é pela condensação do efeito de provocar emoções
no leitor e daí, pela necessidade de uma estrutura rigorosa, que o bom conto se torna raro.
Ora, todas as qualidades necessárias a um conto irrepreensível estão reunidas nesta letra.
Começa por introduzir o leitor/ouvinte na acção e apresentar o cenário em que ela decorre.
Começa por introduzir o leitor/ouvinte na acção e apresentar o cenário em que ela decorre.
Passa ao desenvolvimento dessa mesma acção, descrevendo-a como um observador externo.
A seguir, introduz o elemento de surpresa ao revelar-se testemunha directa num tempo posterior
mas no mesmo cenário, passando da evocação para o tempo real, técnica cinematográfica
por excelência (flash-back). Finalmente, encerra retomando os versos iniciais, em perfeita
simetria formal declarando uma emoção que, exatamente pelo tom confessional, se transmite
ao leitor/ouvinte com toda a intensidade.
É a «chave de ouro» com que um bom conto deve terminar.
A terminologia é deliciosamente adequada ao imaginário fadístico castiço, na vertente
A terminologia é deliciosamente adequada ao imaginário fadístico castiço, na vertente
incensadora dos «tempos que já lá vão», eficaz, objectiva, sem falar de qualidades
ou sentimentos humanos, salvo quando o «quase chorei» nos alerta para que todos aqueles
objectos inanimados tinham um altíssimo significado emotivo.
Diríamos que estes são Fados de arquitectura perfeita.
Diríamos que estes são Fados de arquitectura perfeita.