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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.330' LETRAS <> 3.180.000 VISITAS * ABRIL 2024 *

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Menina das tranças loiras

Domingos Gonçalves da Costa / Maximiano de Sousa
Repertório de Max


Menina das tranças loiras 
Como douradas auroras
Que o sol ardente ilumina
Não ria dos meus cabelos 
Que outrora foram tão belos
Como os seus, linda menina

Esta cabeça que a neve 
Já salpicou ao de leve
E onde os cabelos são escassos
Já fez acender desejos 
Já descansou entre beijos
E em deslumbrantes regaços

Guarde o seu sorriso
Não faça alarde da sua beleza
Seu sorriso é preciso
Se um dia mais tarde chorar de tristeza
Não pense que o mundo ledo
É tudo sorrisos francos
E pense que tarde ou cedo
Há-de ter cabelos brancos

E como há pouco lhe disse 
Vivi sonhos encantados
Que o amor iluminou
Já afaguei com meiguice 
Muitos cabelos doirados
Que o tempo agreste orvalhou

Não ria pois, tenha calma 
E Deus guarde as suas tranças
Da cor do ouro fulgente
Seu sorriso fere a alma 
De quem vive de lembranças
Do amor há muito ausente

Brinquei com as palavras

Paco Gonzalez / Raúl Pereira *fado zé grande*
Repertório de Fernando João


Brinquei com as palavras, fiz poemas
Na minha, a tua boca a sussurrar
Deixei p’ra trás metáforas de medo
E a rima foste tu com teu olhar

Brinquei com as palavras, fiz a noite
Teu corpo junto ao meu, cor de avelã
Deixei p’ra trás os temas da saudade
E a praia foste tu, nessa manhã

Brinquei com as palavras, fiz a água
Matando a tua sede de carinho
Deixei p’ra trás mistérios e florestas
E só te vi a ti no meu caminho

Brinquei com as palavras, fiz a vida
Fiz a terra, fiz o sol, fiz a flor
Fiz do teu corpo a alma apetecida
O leito onde repousa o teu amor

É este fado

Orlando Laranjeira / Jorge Fernando
Repertório de Luísa Basto

Este é o fado
Que nos prende e nos amarra
Neste desejo de amor e ansiedade
Este é o fado
No trinar duma guitarra
E duma voz bem timbrada
Em versos de liberdade

É este o fado
Meio gingão e meio vadio
Que cantado ao desafio
Nos vem trazer a lembrança
De que este fado
Bem alegre e desgarrado
Há nascença foi marcado
Pela onda da esperança


E traz o vinho
Para a mesa da alegria
Que alimenta
Esta nossa fantasia
E mata a sede
Deste querer, desta vontade
Deste grito de saudade
Nascido da nostalgia

Este é o fado
De varinas e pregões
É a tristeza
Da cautela não vendida
É este o fado
De romances e paixões
De poetas e canções
Que ficam p’ra toda a vida

Sopa à portuguesa

José Luís Gordo / Nóbrega e Sousa
Repertório de Ada de Castro


Com legumes de saudade
Faço sopa à portuguesa
Que se come na cidade
Desta terra portuguesa

Com legumes de cansaço
Cheirando a terra sadia
Sempre com sopa e bagaço
Começa o povo o seu dia


Uma sopa à portuguesa
Aquece a tristeza 
Dum pobre sem ver
Fumegando vem p’ra mesa
E faz a riqueza 
De quem a comer
Uma sopa à portuguesa
Aquece a tristeza 
De uns olhos que a espreitam
Tem o cheiro deste povo
Tão velho e tão novo
Num fio de azeite

Já tiveste tantos nomes
Minha sopa à portuguesa
Já foste a sopa dos pobres
Numa fila de tristeza

Aqueceste tantos lares
Em noites de tanta fome
É por isso que te canto
O teu cheiro e o teu nome

Nasci fadista

José Luís Gordo / José Marques
Repertório de Carminho

Ó gente, nasci fadista
Não me chamem de artista
Fado é outra condição;
Fazer do pranto alegria
Transformar a noite em dia
Ter alma no coração

Ser amante da saudade

Ter Lisboa por cidade 
Gostar de Alfamas de gente
Ter nos olhos a tristeza

Dar ao fado esta riqueza 
Que só esta gente sente

E do povo ter o cheiro

Ser barco sem marinheiro 
Ser mais além do que artista
E dentro deste meu peito

Da minha mãe tenho o jeito 
Ó gente, nasci fadista

A cidade a horas mortas

José Guimarães / Manuel dos Santos
Repertório de Fernando João

Almas vencidas 
Na cidade a horas mortas
Vidas perdidas 
Sem saber p’ra onde vão
Em cada rua 
Há sempre um vulto qualquer
Um homem, uma mulher
Amantes da solidão


Do candeeiro da esquina
Densa névoa esconde a luz
Parece uma lamparina
A iluminar uma cruz;
Essa cruz de tanta vida
Que não tem luz, não tem nada
Quanta verdade escondida
Nas sombras da madrugada


Passos marcados 
Batem nas pedras da rua
Olhos cansados 
Vagueando ao Deus dará
As horas mortas 
São refúgio dos sem nada
Que encontram na madrugada
O que o dia não lhes dá

Quase feliz

José Luís Gordo / Carlos Simões Neves *fado tamanquinhas*
Repertório de Patrícia Rodrigues


Fui sol da noite em meus dias
Estrela dum céu coalhado;
Fui vento em pratas vazias
Castelos de fantasia
Nas areias do meu fado

Não me matarei por ti 
Mas por ti eu morrerei
Tudo ganhei e perdi 
Num amor quase feliz
Mas por fim eu me encontrei

Alevantados do chão 
Andam meus olhos em ver
Porque motivo ou razão 
É que rasgo o coração
Que teima em me acontecer

Rosa azul, céu infinito 
Parado na madrugada
Tanto silencio num grito 
Porque chego aonde não fico
E andando fico parada

Silêncio, não quero falar contigo

José Luís Gordo / Carlos Macedo
Repertório de Natalino de Jesus

Silêncio...
Não quero falar contigo
Não me turves mais as águas 
Que tenho para chorar
Silêncio...
Não quero falar contigo
Já me basta este castigo 
De não me saber encontrar

Silêncio...
Não quero falar contigo
Já o rio galgou as margens 
Gritando num outro mar
Silêncio...
Não me grites, por favor
Já me roubaste o meu tempo 
Que tinha para te dar

Silêncio...
Não quero falar contigo
Vai-te embora do meu quarto
Quero estar a sós comigo
Silêncio...
Não quero mais esta água
Quero esquecer esta mágoa
Mas contigo não consigo

Esta voz

José Luís Gordo / José Marques do Amaral
Repertório de Ricardo Ribeiro


Esta voz que canta em mim
É um rio que se desata
Ao beijar o teu jardim
Com sete fontes de prata

Quando choro e quando canto 
É com prazer e tristeza
Sou como a relva do campo 
Presa ao chão da natureza

Olho a papoila que baila 
Nos teus lábios rubra cor
E há uma voz que me cala 
Nos teus olhos. Meu amor

Há milhões de pensamentos 
Que são teus todos os dias
E há sete espadas de ventos 
Golpeando as ventanias

Guitarra companheira

José Luís Gordo, Carlos Macedo / José Marques do Amaral
Repertório de Carlos Macedo


Há quanto tempo te canto
Poemas que só eu sei
Todos os dias o pranto
Deste fado, te ensinei

São carícias que te faço 
Quando te encosto ao meu peito
Se choras no meu abraço 
Eu choro do mesmo jeito

Faço correr os meus dedos 
No teu corpo de menina
P’ra desvendar os segredos 
Do fado que é minha sina

Meu coração te pertence 
Minha alma se desgarra
Este amor que ninguém vence 
Ó minha querida guitarra

Sete pedaços de vento

José Luís Gordo / Custódio Castelo
Repertório de Cristina Branco

Entrego ao vento os meus ais
Onde o desejo se mata
Sete desejos carnais
Que o meu desejo desata;
Meus lábios estrela da tarde
Sete crescentes de lua
Que o desejo não me guarde
Na vontade de ser tua

Quero ser, eu sou assim 
Sete pedaços de vento
Sete rosas num jardim 
Num jardim que eu própria invento

Sete ares de nostalgia 
Sete perfumes diversos
Nos cristais da fantasia 
Amante de amores dispersos

Sete gritos por gritar 
Sete silêncios, viver
Sete luas por brilhar 
E um céu por me acontecer

Gaivota em teu cais

Maria de Lourdes Carvalho / Carlos Macedo
Repertório de Carlos Macedo


Quem me der ser gaivota
Desse teu cais por achar
Quem me dera ser gaivota
Em teus olhos cor do mar

Do suco do teu sorriso 
Meu alimento tirar
Quem me der ser gaivota 
Para em teu corpo poisar

Voar rentinho tão perto 
Mergulhar na tua boca
Quem me der ser gaivota 
Meio perdida, meio louca

Em teus olhos cor do mar 
Meio perdida, meio louca
Para em teu corpo poisar 
Fiz um cais em tua boca

Adoro essa mulher

Letra e música de Carlos Macedo
Repertório do autor


Tenho um amor que me quer
E que eu quero sem limite
Eu digo p’ra quem quiser
E quem quiser que acredite

É bem verdade o que digo
Adoro essa mulher
O que passa comigo
Não sei nem quero saber

Gostar de ti como eu gosto 
Eu aposto ninguém gosta
As loucuras que nós temos 
E fazemos, eu preciso
Preciso de estar contigo
Ser amante, ser amigo
Com teus beijos fico louco 
E pouco a pouco sem juízo

Tu dizes que me queres bem
Eu digo que bem te quero
O nosso amor tudo tem
Até tem amor sincero

Ao ciúme ninguém liga
De nada temos receio
O nosso amor não tem briga
Tem amor de prato cheio

Se eu não voltar amor

Mário Raínho / Renato Varela *fado varela*
Repertório de António Rocha

Se eu não voltar amor, para os teus braços
Aonde primaveras descobri
Decerto se perderam os meus passos
Cansados a tentar saber de ti

Se eu não voltar amor, ao teu sorriso
Sorriso aberto como um dia a despertar
Não julgues meu amor que não preciso
Da imensidão do sol do teu olhar

Se eu não voltar amor, para o teu peito
Almofada de sonho e de prazer
Chora por mim o fado mais perfeito
Que morro de saudades, podes crer

Rua da amargura

Manuel Paião / Eduardo Damas
Repertório de António Mourão


Rua da amargura
És a noite escura 
Do meu coração, assim
Rua da amargura
Mataste a ternura 
Que viveu em mim

Rua da amargura
Vive sem ventura
Vive só de dor
Rua da saudade 
E da crueldade
Rua sem destino 
Dum perdido amor

Rua da amargura
Hoje é só tristeza 
E recordação, p’ra mim
Desde que partiste
Hoje é rua triste
É rua sem fim

Só a saudade amor
Meu peito é somente dor
Meus olhos choram por ti
Não mais te vi
Uma saudade sem fim
Eu trago em mim tristeza e dor
Rua da amargura
Rua feia e escura
Rua sem amor

O Págem

Fernando Teles / Alfredo Duarte
Repertório de Alfredo Marceneiro

Todas as noites um págem
Com voz linda e maviosa
Ia render homenagem
À Marquesinha formosa

Mas numa noite de agoiro
O Marquês fero e brutal
Naquela garganta de oiro
Mandou cravar um punhal

E a Marquesa delirante 
De noite em seu varandim
Pobre louca alucinante
Chorando, cantava assim

Óh minha paixão querida 
Meu amor, meu págem belo
Foge sempre, minha vida 
Deste maldito castelo

Teu passo miúdinho

José de Vasconcellos e Sá / Alfredo Duarte *fado bailarico*
Repertório de António Pinto Basto


Quando há dias te encontrei
Tua figura intrigante
Sugeriu-me o arco-íris
Fez-me para um instante

O teu passo miudinho 
Decidido mas brejeiro
Muito leve, cor de arminho 
Cheirou-me a campo em Janeiro

Terra húmida, fogosa 
A pedir semeadura
Lembraste uma flor mimosa
Cheia de força e candura

Ao envolver-me esta aurora 
Julguei-te a rua da vida
Afinal foste-te embora 
Estou num beco sem saída

Nem uma vez consegui 
O amor de uma mulher
Quando te encontrei a ti 
Foste mais uma qualquer

O pierrot

Linhares Barbosa / Alfredo Duarte *versículo*
Repertório de Alfredo Marceneiro 

Naquele dia de entrudo / lembro bem 
Um intrigante pierrot / da cor do céus 
Um ramo de violetas / pequeninas 
À linda morta atirou / como um adeus 

Passa triste o funeral / é duma virgem 
Mas ao povo que lhe importa / aquele enterro 
Que a morte lhe passa à porta / só por ele 
Em dia de carnaval / e de vertigem 

Abaixo a máscara, gritei / com energia 
Quem és tu grosseiro que ousas / profanar 
Perturbar a paz das lousas / tumulares 
E o pierrot disse: não sei / e não sabia 

Sei apenas que a adorei / um certo dia 
Num amor todo grilhetas / assassinas 
Se não vim de vestes pretas / em ruínas 
Visto de negro o coração / e resoluto; 
Atirou sobre o caixão / como um tributo 
Um ramo de violetas / pequeninas
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Versão original
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*


Naquele dia de Entrudo / Lembro bem:
Um intrigante pierrot / Da cor dos céus
Um ramo de violetas / Pequeninas
À linda morta atirou / Como um adeus

Passa triste o funeral / É duma virgem
Mas ao povo o que lhe importa / Aquele enterro
Que a morte lhe passe à porta / Só por erro
Em dia de Carnaval / E de vertigem
A hora é de bacanal / Cores a tingem
Por isso se alheia a tudo / Num vaivém
Farto de estar carrancudo E sem vintém
Anda ele o ano inteiro, Bem contado,
E assim ’stava galhofeiro / E tresloucado
Naquele dia de Entrudo / Lembro bem

O cortejo lá seguiu / Tristonhamente
Indif’rente aos mascarados / Foliões
Que par’ciam vitimados / Corações
Dum eterno desvario / Impenitente
O meu olhar, então, viu / Amargamente
Um caso que o intrigou / Oh! olhos meus
Quando o cortejo chegou / Entre plebeus
À porta do cemitério / Taciturna
Seguia o carro funéreo / Junto à urna
Um intrigante pierrot / Da cor dos céus

Abaixo a máscara! – gritei / Com energia
Quem és tu grosseiro que ousas / Profanar
Perturbar a paz das lousas / Tumular
E o «pierrot» disse: – Nem sei / Que não sabia
Sei apenas que a adorei / Um certo dia
Num amor todo grilhetas / Assassinas
Se não vim de vestes pretas / Em ruínas
Visto negro o coração / E resoluto
Atirou sobre o caixão / Como um tributo
Um ramo de violetas / Pequeninas

Os guardas não permitiram / Com razão
No cemitério a entrada / Triunfante
Àquela dor mascarada / Àquele amante
Cujos soluços se ouviram/ De emoção
Disseram-me então que o viram / Com paixão
Que o pobre amante tirou / Dos olhos seus
A másc’ra que os disfarçou / E fê-los réus
E num adeus, num temor / Com humildade
Um casto beijo de amor / Todo saudade
À linda morta atirou / Como um adeus

Palavras de vento

Tiago Torres da Silva / Alzira Espindola
Repertório de Maria João Quadros


O vento que vem do mar
Traz abandono nos lábios
Talvez por vir devagar
Testemunha de naufrágios

Ele contou-me um segredo / Talvez um dia o cante
Agora não, tenho medo / Que uma onda se levante

Aquilo que o vento diz / Só poucos podem escutar
Que ele é vento por um triz / Quando sopra devagar

O vento canta baixinho / Nos anéis dos meus cabelos
Porque vem devagarinho / Testemunha de degelos

E mesmo quando ele pára / Como se não existisse
Eu sinto na minha cara / Tudo aquilo que ele disse

Não esqueças o meu lamento / Não me dispas a nudez
Eu não deixo de ser vento / Só porque tu não me vês

A menina do mirante

Henrique Rego / Popular
Repertório de Alfredo Marceneiro 


Menina lá do mirante
Toda vestida de cassa
Deite-me vista saudosa
E um adeus da sua graça

A menina é o retrato 
Sem mesmo tirar nem pôr
De quem me prendeu de amor
Nas festas de São Torcato;
Tem mesmo um olhar gaiato 
Expressivo, embriagante
E essa boca insinuante 
Onde a alegria perdura
É romã fresca madura
Menina lá do mirante

Anda a brisa, com desvelo 
Perfumada a lúcia-lima
A saltitar-lhe por cima 
Dos anéis do seu cabelo;
Abençoado modelo 
De mulher da minha raça
Pois toda a gente que passa 
Olha os céus e diz ao vê-la
A menina é uma estrela
Toda vestida de caça

Ó meu amor vá um dia 
À minha terra e verá
Que do seu mirante lá 
É um voo de cotovia;
Verá como se extasia 
Ante a paisagem formosa
Que se estende graciosa
Num encanto sem limite
Caso aceite o meu convite
Deite-me vista saudosa

No domingo há procissão 
Com andores dos mais ricos
Bodo aos pobres, bailaricos 
Fogo preso e animação;
Lá encontra um coração 
Que de amor se despedaça
Portanto, a menina faça 
Esse coração vibrar
Dando-lhe um simples olhar 
E um adeus da sua graça

Mocita dos caracóis

Linhares Barbosa / Alfredo Duarte
Repertório de Alfredo Marceneiro

Mocita dos caracóis
Não me deixes minha querida
Não ouves os rouxinóis
A cantarem como heróis
A história da nossa vida

Se abalares da nossa herdade 
Os teus encantos destróis
Irás atrás da vaidade 
Que a moda lá na cidade 
Não são desses caracóis 

Teu cabelo é lindo e loiro 
De caracóis verdadeiros
Na cidade esse tesoiro
É comprado a peso d’oiro 
Nos grandes cabeleireiros

Dá-me a tua mocidade 
Que eu dou-te a minha depois
Não queiras ir p’rá cidade
Porque eu morro de saudade 
Mocita dos caracóis

Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*


Esta estrofe não foi gravada
A tua saia rodada
Bordada de girassóis
P’ra tua escultura bonda
Serei sempre a tua ronda
Mocita dos caracóis

Fado escravo

Tiago Torres da Silva / Olívia Byington
Repertório de Maria João Quadros


É no silêncio da noite 
Quando o murmúrio do mar
Se transforma num açoite 
Que todos querem escutar
Que a mulher convoca o vento 
E semeia a tempestade
Ensinando o seu lamento 
A transformar-se em saudade

Talvez se escutem poemas
No negror do tombadilho;
As mulheres são mães supremas
Num braço, trazem algemas
No outro, levam um filho

Por cada onda há um homem 
Num remar de tanta idade
Não são as dores que o consomem
Só o consome a saudade
Há um chicote a estalar
E há um navio que avança
Ninguém se atreve a chorar
Ninguém se atreve a ter esperança

Talvez se escutem canções
Na negrura do convés
Os homens calam paixões
Esconderam os corações
Por sob a planta dos pés

Quem são estes desgraçados 
Que invocam os mares do sul
E acabam naufragados 
Na sombra do céu azul?
Que mar este que se acalma 
Em corpos que o sol queimou
Indo a estibordo da alma 
Que nenhum Deus lhe doou

Talvez se escute uma prece
E se ergam olhos aos céus
Em cada corpo se esquece
Um Deus que não o conhece
Um Deus que não quer ser Deus

Eu lembro-me de ti

Linhares Barbosa / Alfredo Duarte
Repertório de Alfredo Marceneiro

Eu lembro-me de ti, chamavas-te saudade
Vivias num moinho, ao cimo dum outeiro
Tamanquinha no pé, lenço posto à vontade
Nesse tempo eras tu, a filha dum moleiro

Eu lembro-me de ti, passavas para a fonte
Pousando num quadril, o cântaro de barro
Imitavas em graça, a cotovia insonte
E mugias o gado, até encheres o tarro

Eu lembro-me de ti, que às vezes a farinha
Vestia-te de branco, e parecias então
Uma virgem gentil, que fosse à capelinha
Num dia de manhã, fazer a comunhão

Eu lembro-me de ti, e fico-me aturdido
Ao ver-te pela rua, em gargalhadas francas
Pretendo confundir, a pele do teu vestido
Com a sedosa lã, das ovelhinhas brancas

Eu lembro-me de ti, ao ver-te num casino
Descarada a fumar, luxuoso cigarro
Fecho os olhos e vejo, o teu busto franzino
Com o avental da cor, e o cântaro de barro

Eu lembro-me de ti, quando no torvelinho
Da dança sensual, passas louca rolando
Eu sonho eu fantasio, e vejo o teu moínho
Que bailava também, ao vento, assobiando

Eu lembro-me de ti, e fico-me a cismar
Que o nome de Lucy, que tens, não é verdade
Que saudades eu tenho, e leio no teu olhar
A saudade que tens, de quando eras saudade

Vais dizer adeus

Tiago Torres da Silva / Chico César
Repertório de Maria João Quadros


Adeus que não vais voltar 
Adeus que não vais fugir
Adeus que não vais olhar
Vais dizer adeus

Não me vais mentir, n
ão te vais zangar
Não me vais sorrir
Vais dizer adeus
Eu não vou gritar, eu não vou ouvir
Eu não vou chorar
Vais dizer adeus
E vou desmentir o que o teu olhar
Teima em repetir

Há palavras que são pergunta e resposta
Há palavras que são silêncio e barulho
Hã palavras que talvez dêem á costa
Quando enfrentam a saudade num mergulho;
Ou quando o fado se encosta ao nosso orgulho

Mas se os teus olhos são meus

E neles encontro abrigo
Mesmo que te diga adeus

Fico contigo

O meu fado

Moreira da Cruz / José António Sabrosa 
Repertório de Beatriz da Conceição 
Este poema aparece gravado pelo Ricardo Ribeiro na música 
do Fado Maria Rita de Armando Machado com o título *
Mas porquê de eu ser assim* 

Mas porquê se eu ser assim 
Porque trago dentro em mim 
Tanta morte e tanta vida
Esta fogueira inconstante 
Ora chama crepitante 
Ora cinza arrefecida 

Quase sempre esta descrença 
Este estado de indiferença 
Pela verdade ultrajada 
E de repente, esta fé 
Esta ânsia de pôr de pé 
Cada ilusão derrubada 

Quase sempre a cobardia 
Com que enterro dia a dia 
Meus velhos sonhos perdidos 
E logo a fúria incontida
Com que esbofeteio a vida 
Quando ela humilha os vencidos 

Ai quem me dera ter paz
Quem me dera ser capaz 
De vos negar minha mão 
Atraiçoar um amigo 
Libertar-me do castigo 
De te sentir meu irmão

Amor alheio

Paulo César Pinheiro / Ivo Lancellotti
Repertório de Maria João Quadros


Tu foste embora e agora o meu coração
É um coração cortado ao meio
Cada metade dele é uma emoção
Numa eu te adoro, noutra eu te odeio

Tu foste embora e agora em mim, que aflição
Custa a conter o meu anseio
Fiquei achando que ia ter teu perdão
Quis tanto ter teu perdão e ele não veio

Tu foste embora meu bem
E eu vivo com receio
É tanto o amor que a gente tem
Que é triste ver que o amor de alguém
Não foi amor, foi devaneio

Tu foste embora de mim
E eu quase ainda não creio
Por isso é que eu fiquei assim
Pois só se crê que o amor tem fim
Quando é o fim do amor alheio

Grãos de areia

António Rocha / Paulo Valentim
Repertório do autor  


Tal como grãos de areia que fugiam
Por entre as minhas mãos escassas de esperança
Assim foram os sonhos que existiam
Nos restos dos meus sonhos de criança

Tal como a ira ou mansidão do vento
Afaga ou põe em fúria, a voz do mar
Também este meu triste pensamento
Recorda o que não queria recordar

Se a vida fosse um mar de brancas rosas
Como os meus velhos sonhos foram já
Não haveria estradas sinuosas
Onde procuro aquilo que não há

Assim numa alegria que é fingida
Eu sou, nesta procura do meu ser
Grão de areia que foge ás mãos da vida
E cai nas mãos da morte p’ra viver


Gota d’água

Letra e musica de Chico Buarque
Repertório de Maria João Quadros


Já te dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue, quando fervia

Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa

Por favor, deixe em paz meu coração
Que ele é um pote, até aqui, de mágoa
E qualquer desatenção
Faça não
Pode ser a gota d’água

Eu hei-de amar uma onda

Tiago Torres da Silva / Francis Hime
Repertório de Maria João Quadros


Eu hei-de amar uma onda
Que de tanto naufragar
Não deixará que eu responda
Aos gritos roucos do mar

Eu hei-de amar uma pedra
Que sentindo-se tão só
Vai fazer tremer a terra
P’ra se desfazer em pó

Não há coração mais puro 
Do que aquele que adivinho
Rente ao chão quando procuro 
O amor do meu caminho
Não tem amor mais desejado
Nem paixão mais violenta
Porque eu hei-de amar no fado 
A saudade que ele inventa

Eu hei-de amar uma fonte
Fonte de água tão clara
Que a linha do horizonte
Vai prender-se á minha cara

Eu hei-de amar uma rosa
Que ao saber-me sua amante
Irá nascer tão viçosa
Que murcha no mesmo instante

Derrocada

Fernando Farinha / Renato Varela *fado varela*
Repertório de Fernando Farinha


Onde estão os amigos que diziam
Ter por mim, amizade inabalável
Para quem eu, sem ver que me mentiam
Fui amigo sincero e fui prestável

Onde estão os patrões que disputavam
A troco de dinheiro, o meu valor
E que quando na rua me encontravam
Minhas mãos apertavem com calor

Onde estão os colegas verdadeiros
Por quem eu era sempre acompanhado
Aqueles meus antigos companheiros
Que adoravam andar sempre a meu lado

O velho artista, após ter-me contado
Da sua fama e glória, o triste fim
Despediu-se tristonho e apressado
Talvez p’ra não chorar ao pé de mim

E eu que compreendi o valor forte
Desta verdade amarga e tão atroz
Pensei no que será a minha sorte
Se algum dia perder a minha voz

Quando a noite adormece

Tiago Torres da Silva / Ivan Lins
Repertório de Maria João Quadros

Gosto das tuas risadas
Da cor que os teus olhos ganham ao sorrir
Abrindo manhãs, desenhando estradas
Por onde os meus passos se atrevem a ir

Palavras e vozes e gestos
Me trazem memórias que falam de ti
E me dão o que eu sempre sonhei
Mas nunca pedi

Gosto das ondas quebradas
Nas praias que a lua quer iluminar
Em busca dos corpos, das juras salgadas
Dos beijos que as bocas roubaram ao mar

Palavras e vozes e gestos
Me trazem memórias que falam de ti
E eu invento o que sempre pensei
Mas nunca entendi

É como se eu soubesse 
Porque que a saudade vem
Quando a noite adormece 
Nas mãos de alguém
É como se eu esperasse 
Que o teu olhar sorria
E só depois deixasse 
Nascer o dia

Gosto de histórias guardadas
Nas arcas que o tempo não pôde fechar
Beijando demónios, enrolando fadas
Ás teias de aranha que eu soube bordar

Trapos e horas e chaves
Me trazem memórias que falam de ti
E eu murmuro o que sempre calei
Mas nunca esqueci

Gente vulgar

Tiago Torres da Silva / Alzira Espíndola
Repertório de Maria João Quadros


Sei que o fado só tem voz 
Entre gente como nós
Gente vulgar
E que o fado é uma cantiga 
Que só abriga
Gente vulgar
Sei que o fado aconteceu 
Entre gente como eu
Gente vulgar
E que ele só se demora 
Nas ruas aonde mora
Gente vulgar

O fado não tem peneiras 
Nem a mania que é chique
Se o trancam nas Amoreiras 
Foge p’ra Campo de Ourique

O fado não se governa 
Com fidalgos e burgueses
Prefere andar na taverna
 E beber demais, ás vezes

O fado não tem rotina 
Nem hora p’ra recolher
Adormece em cada esquina 
Nos braços duma mulher

O fado não usa aigrettes 
Nem gosta de pôr gravata
E nunca o vi fazer fretes 
Nem andar com gente chata

O fado não tem vaidade 
E se o prendem num salão
Ele morre de saudade 
Da Rua do Capelão

O fado nunca socorre 
A quem cantando o maltrata
Pois por um fado que morre 
Há sempre um fado que mata

Fado mulato

Tiago Torres da Silva / Zeca Baleiro
Repertório de Maria João Quadros


Uma jangada perdida 
Chega a um porto qualquer
Vem quebrada, vem sumida 
Traz a fome adormecida
No ventre duma mulher

Ouvem-se ao longe tambores 
Há uma lua que brilha
Bebendo a seiva das flores 
A mulher morre de amores
Pela voz daquela ilha

Fado mulato... 
Fado que ao nascer do dia
Traz o perfume do mato
Agarrado á melodia
Fado que embala
Um sono que sem aviso
Descobre a voz da sanzala
No sonho do seu sorriso

Aquela mulher perdida 
Encontra um homem qualquer
E ao dar-lhe a sua vida 
Ela fica mais perdida
Não lhe dando o que ele quer

Ao longe o vento que passa 
Não sabe dar testemunho
De ver nascer uma raça 
Onde Dezembro se enlaça
Ás tardes calmas de Junho

Mais uma bala perdida 
Trespassa um corpo qualquer
E há uma pátria que vencida 
Tenta estancar a ferida
Com o que a terra lhe der

A terra dá-lhe suspiros 
E a terra dá-lhe canções
Vazam-se as noites com tiros 
Rasgam-se as almas com vírus
Que matam mais que canhões

Uma guitarra perdida 
Dedilha um fado qualquer
Levanta a voz destemida 
E diz que por estar vencida
Não deixou de ser mulher

Se alguém souber, que me explique
Como é que um perfume chora
Mas mesmo que aqui não fique 
Hei-de levar Moçambique
Pela minha vida fora

Noites perdidas

Tiago Torres da Silva / Pedro Luís 
Repertório de Maria João Quadros 

Sempre soube que a saudade 
Se apaixonara por mim
E que sentia vaidade 
Por me ver sofrer assim 

Eu dei-me a essa paixão 
Na tristeza de um noivado
Onde entrego á solidão 
Tudo o que me deu o fado 

Aprendi a dar o braço 
À madrugada mais estreita 
Porque a dor acerta o passo
Pelas mãos de quem aceita;
Que é vendo o nosso cansaço 
Que a saudade se aproveita 
P’ra desfazer o compasso 
Com que o nosso amor se deita 

Sempre soube que as guitarras 
Gostavam de ser tangidas 
Só p’ra deitarem as garras 
Às minhas noites perdidas 

Mas as saudades são vãs 
Quando dormem a meu lado 
Porque eu acordo as manhãs 
P’ra virem ouvir o fado 

Sempre soube a solidão 
Pois deixei a alma enxuta
Ao chorar por tradição 
P’ra dar prazer a quem me escuta

Foi ouvindo o que soubeste 
Que o teu fado me procura
Porque o xaile que me déste 
É feito de noite escura

Caravela

Carlos Barrela / Mário Pacheco
Repertório de Nuno da Camara Pereira

Tu foste meu país, a caravela
Andámos todos nós no alto mar
Por ti rasgamos medos com as velas
Que a nossa solidão soube inventar

Fomos além, mais além que o além
Fomos bandeiras nos mapas de outros tempos
Com a cor do céu azul que ninguém tem
A não ser este país onde nasce o vento

Erguemos fortalezas de esplendor
Espalhámos pelo chão, ouro e canela
E abriu-se em nosso corpo a maior dor
Ao fazerem em filigrana as caravelas

Tu és meu país, a água forte
Á Europa dás conforto final
Vencedor de amarguras e de morte
Que de novo se cumpra Portugal

Há fado em mim

*Atalhos proibidos*
Artur Ribeiro / Miguel Ramos *fado alberto*
Repertório de Filipe Duarte


Há fado na minh’alma por ti louca
Neste anseio de choro que m´invade
E que deixa ficar na minha boca
O travo tão amargo da saudade

Há fado nesta lágrima sentida
Que brinca no meu riso amargurado
E vai caír teimosa e dolorida
Pelas notas vadias do meu fado

Há fado se não dormes no meu peito
No tanger das guitarras em quebranto
Há fado no meu canto contrafeito
Se te não vejo aqui, enquanto canto

Há fado, nos meus passos descabidos
Neste bater à porta sempre errada
Quem anda por atalhos proibidos
Pode chegar ao fim e não ter nada

Diz se me conheces

Carlos Barrela / Mário Pacheco
Repertório de Nuno da Câmara Pereira

Diz se me conheces, meu cansado espelho
Rio Tejo tão velho quando a noite desce
Diz se me conheces no caudal das águas
Cantando estas mágoas que o amor me tece

Diz se me conheces
Diz se me conheces

Diz se me conheces, rápido cavalo
Das campinas bravas onde cavalguei
Diz se me conheces quando há no meu fado
Palavras amargas que da vida herdei

Diz se me conheces, português trigueiro
Falso aventureiro que o sol envelhece
Diz se me conheces, menina das tranças
Que quando criança, mil beijos me déste

Diz se me conheces, meu país saudade
Que lavas a aurora com o nevoeiro
Diz se me conheces, ó minha cidade
Se ainda namoras comigo primeiro

Maria Triste

A. Santos / Jaime santos
Repertório de Manuel de Almeida

Vi hoje a Maria triste
Olhar-me com tal tristeza
Que em mim ficou a certeza
Que só tristeza lhe assiste

Ela que tinha a alegria
Que o arrebol põe nos prados
Pôs na minh’alma os cuidados
Dum poente em agonia

Alguém quebrou 
Juras dum amor secreto
Com desprezo por um afeto
Que em segredo se entregou
Hoje consiste
Da Maria já sem esperança
Ter apenas por lembrança
Lembranças dum amor triste

Fado de amor e pecado

João Monge / João Gil
Repertório de Ana Sofia Varela


Parti andorinhas parti
Longe do meu telhado
Os barcos que jazem aqui 
Foram de outro lugar
Quem sabe amor, onde vai

Quem sabe a dor que nos cai
O vento passa por nós 
E o resto é o mar

Matei a rosa vermelha 
Que usava ao decote
Tingi os lençóis com a raiva 
De amor e pecado
Olhai as mãos, meu amor

Olhai meus olhos, senhor
Cantai guitarras cantai 
A tristeza do fado

Adeus amor que matei
O mar que há-de encontrar 
O nosso coração
Adeus amor que jurei
Minha rosa de fogo e de paixão

Fui carne de amor e ciúme
Fui vinho e loucura
Um cravo em botão, meu amor
Preso à tua lapela
Chorei, amor, este fim

Sequei por dentro de mim
Deixei uma rosa vermelha 
À tua janela

Tracei o meu xaile no rosto
É de luto este fado
Lavei o teu sangue na chuva 
Que lava a saudade
Olhai as mãos, meu amor

Olhai meus olhos, senhor
Cantai guitarras
Cantai a minha liberdade

Sei que me viste passar

João Monge / João Gil
Repertório de Ana Sofia Varela 


Sei que me viste passar e disfarçaste
Eu fingi que passei sem dar por ti
Desviaste o olhar mas sei que olhaste
Porque me encandeei quando te vi

Sonhei dias a fio fazer-te adeus
Viraste os olhos à lua para não dar azo
Se alguém disser que me viu, juro por Deus
Que passei á tua rua só por acaso

Senti o teu olhar nas minhas costas
Sei o bem que me faz ao coração
Gosto de te cruzar, tu também gostas
E um dia não és capaz de fingir que não

A minha canção é saudade

Vaz Fernandes / Frederico de Brito *fado britinho*
Repertório de Amália  


De ilusões desvanecidas
Filme de esperanças perdidas
Minha canção é saudade
Em que de tranças caídas

Via tudo em cores garridas
E em todos via bondade

E nesta sinceridade

De amor e sensualidade 
Ponho a alma ao coração
Numa angústia, uma ansiedade

Minha canção é saudade 
Do amor sonhado em vão

Nesta saudade sem fim

Choro saudades de mim
Sou mulher mas fui pequena
Também brinquei e corri

Mas quem sabe se sofri
Se é de mim que tenho pena

Franjas de ternura

Sílvia Filipe / Luís Alexandre
Repertório de Sílvia Filipe

Teu beijo é veludo que enternece
Minha boca sedenta de carinho
A tua voz, frescura, puro linho
Teu abraço, manto de lã que me aquece

Sem ti sou tela crua e vazia
Quadro em branco, ainda por pintar
Farrapo de cetim em cama fria
Lençol sem ninguém p’ra aconchegar

Juntos, inventámos seda pura
Num enleio de amor feito bordado
Nossas mãos são as franjas da ternura
No xaile que abriga o nosso fado

A rua do silêncio

António Sousa Freitas / Joaquim Campos *fado alexandrino*
Repertório de Carlos do Carmo


Na rua do silêncio é tudo mais ausente
Até foge o luar e até a vida é pranto
Não há juras de amor, não há quem nos lamente
E o sol quando lá vai é p’ra deitar quebranto

Na rua do silêncio o fado é mais sombrio
E as sombras duma flor não cabem lá também
A rua tem destino e o seu destino frio
Não tem sentido algum, não passa lá ninguém

Na rua do silêncio as portas 'stão fechadas
E até o sonho cai, sem fé e sem ternura
Na rua do silêncio há lágrimas cansadas
Na rua do silêncio é sempre noite escura

Quem sente muito cala

Fernando Pessoa / Popular
Repertório de Sílvia Filipe


O amor, quando se revela
Não se sabe revelar
Sabe bem olhar p’ra ele
Mas não lhe sabe falar

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer
Fala: parece que mente 
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ele adivinhasse 
Se pudesse ouvir o olhar
E se um olhar lhe bastasse 
P’ra saber que a estão a amar

Mas quem sente muito, cala 
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala 
Fica só, inteiramente

Sem razão

Fernando Farinha / Alberto Correia
Repertório de Amália

Meu amor
Não me perguntes o motivo
Da paixão que me tortura
A verdadeira paixão 
Não tem razão
Nem se procura
É desgosto ou felicidade
Que chega em qualquer altura

Por que gostei de ti, não sei
Pois nada fiz p’ra que te queira
Se o amor se perdeu
Que culpa tenho eu 
De querer-te desta maneira

O amor não anda às ordens 
De ninguém
Aparece de surpresa
Só sei que assim que te vi
Olhei p’ra ti e fiquei presa
Neste mundo ninguém sabe
Do amor a natureza

Ninguém sabe onde mora a sorte
Nem se adivinha o mal castigo
O amor, quando vem
Não sabemos também 
A sorte que traz consigo

Meu país guerreiro e mareante

Maria Manuel Cid / Custódio Castelo
Repertório de António Pelarigo


Ó meu país guerreiro e mareante
Ó meu país de montes e trigais
Descasa nos meus braços um instante
E diz-me por favor aonde vais

Ó meu país que o tempo naufragou
Na praia lusitana do meu berço
Destroço duma nau que navegou
Ao largo desse mar que não conheço

A força do teu braço, diz a história
Um dia voltará como renovo
Há oitocentos anos duma glória
Correndo pelas veias do teu povo

O teu corpo cansado está doente
O tempo p’ra viver não é demais
Pára de rir assim, tão doidamente
E diz-me por favor, aonde vais

Mar de fado

Sílvia Filipe / Marino de Freitas
Repertório de Sílvia Filipe


Num mar picado, o vento forte
Trouxe-me o frio sem aviso
Meu fado não tivera melhor sorte
Quisera em minh’alma um sorriso

Fui grão de areia em praia vazia

Num mar salgado, vaga de medo
No frio que o vento trazia

Guardava o meu fado em segredo

Fui maré cheia, cheia de nada

Maré vazia de tudo
Onda parada, um canto mudo

Num mar imenso de alma salgada

Num mar de fado a doce bruma

Trouxe-me a esperança em maré cheia
Fui quebrando as mágoas uma a uma

Soltei o medo dançando na areia

Na melodia que hoje canto

Choro esse frio que não guardo
Não fecho o segredo, nem meu pranto

Sou vaga, mas feliz, num mar de fado

Sou maré cheia, cheia de vida
Maré vazia, vazia de lamento
Dor esquecida, esquecida no tempo
Sou feliz num mar de fado

Adeus

José Galhardo / Raúl Ferrão
Repertório de Ana Laíns

Meu amor na vida
Sem vida eu fico aqui
Desde que à partida
Meu bem, fiquei sem ti
Bem peço aos retratos socorro
São mudos, ingratos
Vem tu, se não morro

Nem mesmo a saudade 
Me traz consolação
Quero uma verdade
Não quero uma ilusão
Na alma ainda me dói, meiga a tua voz
Quando o barco foi tão mau p’ra nós

Adeus
Não afastes os teus olhos dos meus
Até quando ao longe a bruma 
A pairar se consuma 
Entre as ondas do mar e os céus
Adeus
Não afastes os teus olhos meus
Dá-lhes carinhos
Que partem ceguinhos de amor
Pelos teus

Sei que tu existes 
E sei também, meu Zé
Que há palavras tristes
E que uma delas é
A que me tortura, a distância
Não sei se há mais dura 
Na minha ignorância

Há palavras belas
Mas quase as esqueci
Véu, noivado, estrelas
Altar, e outras pr’aí
Quando as ouvirei todas sol, Jesus
Hoje apenas sei estas sem luz

Não sou nascida do fado

Ana Laíns / Reynaldo Varela *fado meia noite*
Repertório de Ana Laíns


Não sou nascida do fado
Nasci do mundo e da vida
De uma memória perdida
De um tempo certo e errado

Não sou nascida do fado 
Nasci do pouco e do tanto
Da terra e do mar salgado 
Do amor, da dor e do pranto

Não sou nascida do fado 
Nasci do canto do vento
No encanto de um momento 
De um destino não destinado

E se eu não nasci do fado 
Nem da saudade de alguém
Se o fado me foi negado 
Eu não nasci de ninguém

Fado do miradouro

Ary dos Santos / Alfredo Duarte *fado versículo*
Repertório de José Manuel Osório


Do alto do miradouro / da cidade
Com olhos molhados vejo / o que eu adoro
De cabelos cor de ouro / mocidade
Da Lisboa mira tejo / onde eu moro

Da Lisboa mira mágoa / onde eu penso
Com a chita dos telhados / a cobrir
Descosida á beira água / o rio imenso
Em vestidos já cansados / de vestir

De Lisboa mira dor / mas feita gente
Aberta blusa de vento / marinheiro
Talhada em fado menor / amargamente
Caseada a sofrimento / verdadeiro

De Lisboa mira céu / incendiada
No azul da madrugada / que nasceu
De Lisboa que sou eu / apaixonada
Mulher do povo sem nada / que se ergueu

De Lisboa mira espaço / sem limite
Abrindo cada janela / á liberdade
Para que á força do braço / não hesite
E o fumo seja dela / de verdade

Em Lisboa mira Abril / que é primavera
Mesmo no fado menor / que tanto dói
Somos muitos, muitos mil / todos á espera
Duma esperança que é maior / que sempre foi

Desespero

Ary dos Santos / Júlio Proença *fado esmerarldinha*
Repertório de José Manuel Osório

Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci

Não fui eu que te quis e não sou eu
Que hoje te embalo e gemo e canto e gero
Possesso desta raiva que me deu
A grande solidão que de ti espero

E à sombra da mágoa é que te vejo
E à sombra do ódio é que te quero
A voz com que te chamo é o desencanto
E a seiva que te dou, o desespero

Olha a ribeirinha

Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves
Repertório de Amália

Olha a ribeirinha
Que sonhou ser rio

Sonho de grandeza 
De ribeira presa
Que vai com certeza 
Deixar de sonhar
Anda ribeirinha 
Corre ligeirinha
Não chores sózinha 
Mais chorou o mar

Olha a ribeirinha
Que é do sonho que ela tinha
De pedra, pedrinha a pedrinha
Vai correndo a ribeirinha

Vi a ribeirinha
Que triste que vinha

Sonhou a ribeira 
Com a terra inteira
A correr ligeira 
Seu sangue gastou
Da mesma maneira 
Sequei eu, ribeira
Da mesma maneira 
Meu sonho secou

Ai a ribeirinha
Que tinha o sonho que eu tinha
Chorando, gotinha a gotinha
Vai secando a ribeirinha

Morrinha

Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves
Repertório de Amália


Ai, sonhos, pranto, rios, poço, corpo
De lírio e hortelã agreste
São sonho que morre, são água que corre
Que da minha sede bebeste

Na minha cama há um lençol de linho

Que hoje é como eu, sózinho
A sua brancura, a minha ternura
São minha loucura, meu espinho

Na minha solidão, que é toda minha

Na minha solidão, sózinha
Tristeza em botão que eu guardo na mão
Crescendo, crescendo, morrinha

Flor de lua

Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves
Repertório de Amália


Solidão, campo aberto 
Campo chão, tão deserto
Meu verão, ansiedade 
Meu irmão, de saudade

Campo sol, girassol, branco lírio
Ilusão, solidão, meu martírio
Torna a flor, minha flor, campo chão
Torna a dor, minha dor, solidão

Vai no vento a passar 
Um lamento a gritar
Dó ré mi, mi fá sol 
Dó ré mi, Girassol

Velho cardo, esguio nardo, flor de lua
Mi fá sol, Girassol, eu sou tua
Torna a dor, minha flor, campo chão
Torna a dor, minha flor, solidão

Grita o mar, geme o vento 
Teu olhar, meu tormento
Chora a lua, flor dourada 
Madressilva, madrugada

Canta a lua, semi-nua, flor mimosa
Sargaçal, roseiral, minha rosa
Chora a fonte, reza o monte, branca asa
Canta a flor, chora a flor, campa rasa