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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.350' LETRAS <> 3.180.000 VISITAS * ABRIL 2024 *

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Sonho por sonhar

António Cálem / Popular c/arranjos de Jorge Fontes
Repertório de Ondina Sotto Mayor


Quem me dera a solidão
Ser eu sozinho a chorar
Sem te ter no coração
Sem te ver no meu olhar

Sem te ver no meu olhar 
Sem te ler no pensamento
Semente feita luar 
Levada a sabor do vento

Levada a sabor do vento 
Levada a sabor da vida
Quem dera que o pensamento 
Fosse a semente perdida

Fosse a semente perdida 
Que não voltasse a encontrar
Quem dera que a minha vida 
Fosse um sonho por sonhar

De manhã

Alberto Franco / Santos Moreira *fado moreninha”
Repertório de Carina Mateus


Manhã de Verão, domingo luminoso
Lisboa, sonolenta, ainda preguiça
Pelo bairro burguês silencioso
Passam damas beatas para a missa

Ela acordou há pouco ansiosa
Só de pensar no dia que aí vem
Estreará o vestido cor-de-rosa
Ou o azul que nela cai tão bem?

Um domingo no campo, que alegria
Ar livre e os encantos mais diversos
E para o piquenique a companhia
Dum certo moço triste que faz versos

Ela colheu um ramo de papoulas
Vermelhas, cor do poente que arde
Pô-lo no peito sem vaidades tolas
E foi a mais bonita dessa tarde

Serenata

António Cálem / Alfredo Duarte *fado bailarico*
Repertório de João Braga


A lua faz o cenário
Num palco que julgo ver
Telhados dum campanário
E ao fundo um rio a correr

Ondeiam gestos usados 
Nascidos só de fadiga
E há só murmúrios velados 
A sonhar uma cantiga

Pedaços de guitarradas 
Fazem vibrar as vidraças
Onde acordam estremunhadas 
Figuras gastas e baças

E uma que só retrata 
O sonho e o coração
Julga ouvir a serenata 
Que nunca mais lhe farão

Três nomes

Alberto Franco / Joaquim Campos *fado tango*
Repertório de Raquel Maria


As nossas vidas negaram
Cegaram os horizontes
Os sonhos amortalharam
E em choro transformaram
O canto alegre das fontes

Tanto ódio semeado
Com punhos de renda fina
Em quanto salão dourado
Do luxo mais requintado

Pairam aves de rapina
O amor não teve lugar
Foi das trevas a vitória
Um lenço branco a acenar
Um navio em alto mar
Ficaram da nossa história

Mas nas páginas dum livro
Persiste a recordação
Por muito amar estamos vivos
Três nomes do amor cativos
Mariana, Teresa e Simão

Sim ou não

António Cálem / José António Sabrosa *fado saudade das saudades*
Repertório de António de Noronha

Que triste é passar a vida
Entre um sim e entre um não
Viver da hora perdida
Do bater dum coração

Ficar à espera dum nada 
Dum silêncio que ainda dura
Ser-se noite em madrugada 
Ou manhã em noite escura

E o coração a bater 
Ora diz sim ou diz não
A vida que vai nascer 
Ou a morte e a solidão

Mas não me digas que não
Sem saber para onde vais
Diz-me que sim, coração 
Deixa o não para nunca mais

Dona Genciana

Alberto Franco / Pedro Rodrigues
Repertório de Ana Pacheco


Depois que o canhão soou
E Lisboa vitoriou
A República tão bela
Numa avenida catita
Uma crioula bonita
Passava o tempo à janela

Genciana tropical
Do Brasil p’ra Portugal
Com o seu nome de flor
Da janela em que reinava
A todos enamorava
Desde o operário ao doutor

Mas a janela ansiada
Um dia apareceu fechada
Genciana não estava lá
Dizem que fugiu do frio
Que voltou para o seu Rio
Por feitiço de Orixá

Há gente que nesta hora
Sente saudades e chora
Junto àquela persiana
Um velhote que a amou
Ainda há pouco me falou
Nos encantos de Genciana

Passam os dias, os anos

António Cálem / Joaquim Campos *fado Rosita*
Repertório de Miguel Sanches


Passam os dias, os anos
E és tu que hás-de ficar
A viver do desengano
De só te saber sonhar

É que eles passam sem fim 
E contigo permanecem
É que há mundos que esqueci 
Mas contigo não se esquecem

É que tu trazes aos dias 
O que aos dias me faltava
O riso, as alegrias 
Que o mundo já não me dava

Mas ninguém mais, somos nós 
A sulcar o mar profundo
É que o mundo somos nós 
E o resto nem sei se é mundo

Canção da costureirinha

Arnaldo Leite / Campos Monteiro / Fernando Carvalho
Repertório de Maria de Fátima Bravo

Esta vida minha toda amor e fé
Lembra a daquela andorinha
Que voa sempre à tardinha
Sobre os telhados da Sé

Corro o Porto a eito 
De ruas em flor
Xaile atado em cruz no peito
Porque o meu amor 
Vive satisfeito
No seu bendito calor

Ó linda costureirinha
Teus sonhos e teus segredos
São um novelo de linha
Entre os fusos dos teus dedos
E os teus olhos tão escravos
D'um trabalho sem igual
Tens o cordão d'alinhavos
E por anel um dedal


Sou a costureira
E à noite em casa
Trabalho de tal maneira
Que os meus olhos de canseira
Ardem mais do que uma brasa

Já não vejo a rua 
Vejo agulha e linha
Vai-se o sol, desmaia a lua
E tu ali sozinha 
Triste vida a tua
Ó linda costureirinha

Ó linda costureirinha
Teu andar tão leve, leve
Lembra o de uma princesinha
Sobre um caminho de neve
E o teu riso cristalino
Fonte d’ amor e beleza
É a letra do novo hino
Onde não reina a tristeza

Sonho desfeito

Lera e música de Frei Hermano da Câmara
Repertório do autor


Esta paixão 
Que nasceu na primavera
Já deixou de ser o que era
Meu coração
Ao ver-me assim satisfeito
Punha-se aos saltos no peito
Num turbilhão

E agora já nada resta
Que uma tristeza funesta
Pelo chão
Vejo a sombra da alegria
Na minh`alma morre o dia
Cai a noite e a escuridão

E quando canto 
Ao som triste da guitarra
Fico preso pela amarra 
Dum profundo sentimento
E canto tanto 
Que o meu coração amigo
Quer também cantar comigo 
E aumenta o meu sofrimento

Uma ilusão 
Que eu pensei que estava morta
Veio bater à minha porta
Por compaixão
Quis-se sentar a meu lado
Cantou comigo este fado
Com emoção

Mas finalmente ao saber
Que eu já não quero viver
Meu coração vai batendo devagar
E até que eu queira parar
Vou rezando esta oração

Quando esta dor 
Vir meus dias apagados
E estes meus olhos fechados
Braços em cruz sobre o peito
Ó meu amor
Nesse dia tão medonho
Pede a Deus um outro sonho
Porque este já está desfeito

Lisboa cidade sol

Arlindo de Carvalho / Eduardo Olímpio
Repertório de Lenita Gentil


Nos braços da madrugada
Lisboa vejo acordar
Seus olhos de água salgada
Saudades têm do mar

A voz fresca dum ardina
Ajuda o sol a nascer
E o bailar duma varina
Ao descer uma colina
Sabe a gosto de viver

Onde é que o sol 
Tem mais bela a claridade?
É em Lisboa, é em Lisboa
Onde é que a noite 
Canta a palavra saudade?
É em Lisboa, é em Lisboa
Onde é que o fado 
Tem mais alma e mais verdade?
É em Lisboa, é em Lisboa
Não há no mundo cidade
Como Lisboa, como Lisboa


Canoas dormem pousando
Os remos à beira cais
E há moços que andam pescando
Cachopas, nos arraiais

Lisboa, velha Lisboa
Ó musa d´inspiração
Do Cesário e do Pessoa
Em tuas asas já voa
O azul duma canção

Sonho perdido

António Cálem / Joaquim Campos *fado amora*
Repertório de João Braga

Noite branca de luar
Nesse teu corpo presente
Onde apenas sei sonhar
O sonho de toda a gente

O sonho de toda a gente 
Que paga para o sonhar
Um sonho que nem é sonho 
Que é apenas despertar

Se ao menos em ti quisesse 
Sonhar que o sonho era meu
Mas a vida em ti esquece 
O sonho que se perdeu

O sonho que jaz perdido 
No fim do teu coração
E que se abre num sorriso 
Quase a pedir-me perdão

Não te conheço sequer

António Cálem / Fernando Freitas *fado das sardinheiras*
Repertório de Joana Possollo Cruz


Não te conheço sequer
Nem sei que cantas para mim
Mas sei que te vi passar
À noite no meu jardim

E sei que tu me cantaste 
Um fado que eu já sentira
E sei que a letra era minha 
Num menor que nunca ouvira

Nem mesmo sei se era fado 
Se era o luar que descia
Mas vi-te de braço dado 
Com a noite que sorria

Não te conheço, bem sei 
Sonhei antes de te ver
Mas de tudo o que sonhei 
Ficou este amanhecer

Morrer por ti

José Pereira da Conceição / Popular “fado das horas
Repertório de Manuel Barbosa


Que importa o mundo saber
Que é por ti amor, que eu canto
Pois é fácil perceber
Porque é que te quero tanto

Que importa o mundo saber 
Que os versos que te dedico
Escrevo-os com tal prazer 
Que por ti, feliz eu fico

Que importa o mundo saber 
Que a gente pouco se rala
Se não sabem entender 
Que é de amor que o amor fala

Quero lá saber do mundo 
Se o mundo não quer saber
Que por este amor profundo 
Um dia eu hei-de morrer

Saudade espuma do mar

José Aucher / João Blak *fado menor do porto*
Repertório de Teresa Siqueira


Saudade, espuma do mar
E a onda baixou na areia
Para marcar o lugar
Onde esteve em maré cheia

Saudade, espuma perdida
Que o vento espalhou no ar
Foste por ele vencida
Cedeste-lhe o teu lugar

E se o tempon na verdade
A espuma do mar levou
Porque não leva a saudade
Que o teu amor me deixou

Para quê versos?

António Calém / Pedro Rodrigues *fado primavera*
Repertório de Zé Caravela

Para quê versos, meu amor?
Versos são aonde eu for
O teu nome e nada mais
Porquê dizer tudo ao vento
Mesmo que esse meu lamento
Seja o eco dos meus ais?

Para quê versos, meu amor?
Eu já cantei toda a dor
Já chorei e fiz chorar
Não sei mais o que te diga
Não sei trova mais antiga
Que ainda te saiba cantar

Para quê versos, meu amor?
Se tu és aquela flor
Que eu vi pela vez primeira?
Depois do tempo vivido
Foste esse lírio florido
Que eu sonhei a vida inteira

História do Chico do Cachené

Este magnífico trabalho foi-me cedido pelo mestre 
DANIEL GOUVEIA
- - - 
Em 1945, Linhares Barbosa escreveu um «auto poético fadista» 
intitulado: O Julgamento do Chico do Cachené. 

Tudo começou quando um grupo de amigos, dos quais faziam parte 
o artista plástico e boémio D. Tomás José de Melo (Tom) 
Linhares Barbosa, saiu da Adega Machado 
após um animado almoço. 

Um ferro-velho ambulante expunha num carrinho várias bugigangas
onde Tom divisou um boneco de madeira, nu com meio metro 
de altura. 
Comprou-o, sob as piadas dos amigos, e levou-o consigo. 

Dias depois apareceu no Machado com o boneco vestido à «faia» 
de jaqueta, calça de boca-de-sino, bota «afiambrada», chapéu à banda
cache-nez de seda ao pescoço. 

Armando Machado pô-lo numa peanha, em local bem visível da casa 
e mestre Linhares batizou-o de «Chico do Cachené».

Mais uns tempos passados e o mesmo grupo divertia-se em
fazer comentários ao «Chico».

Uns acusando-o de ser um estroina, bêbado, sem ocupação 
senão a de estar na sua peanha a ouvir fados
vivendo à custa de uma mulher (a Micas).

Outros defendendo-o, alegando que tinha sido 
um desgosto de amor ele nem era mau rapaz, e por aí fora.

Então, Linhares Barbosa propôs fazer-lhe um julgamento 
em forma para o que escreveria os depoimentos da acusação 
da defesa, a sentença tudo em letras de fado a fim de ser 
cantado ali mesmo. 

Estreou-se este auto poético fadista em 28 de Julho de 1945
às 15h00, na Adega Machado. 

Foram intervenientes:
Maria de Lurdes Machado, Fernando Farinha, Natália dos Anjos
Maria de Castro, Jacinto Pereira e Gabino Ferreira
Acompanhados, à guitarra e à viola por 
António Henriques e Flávio Teixeira. 
O próprio Linhares desempenhou o papel de Juiz

Em 25 de Maio de 1948 foi de novo levado à cena, no Café Luso.

Depois, caiu no esquecimento, as letras perderam-se
havendo apenas excertos publicados na Guitarra de Portugal
n.º 5, de 15 de Agosto e 1945.

Encontradas, na íntegra, nos arquivos de Francisco Mendes 
foi o auto encenado por José Manuel Osório em 1999
sendo representado na mesma Adega Machado 
onde fora estreado, na Adega Mesquita, A Severa, Café Luso 
Clube de Fado, O Faia, O Timpanas, Restaurante Senhor Vinho
Sociedade A Voz do Operário e Taverna do Embuçado. 

No ano seguinte, subiu à cena no Grande Auditório 
do Centro Cultural de Belém. 

Foram intérpretes: 
Alice Pimenta, Maria Amélia Proença, Julieta Estrela, António Rocha 
Daniel Gouveia, Filipe Duarte e Hélder Moutinho
com acompanhamento de Carlos Fontes e João Chitas (guitarras)
Luís Costa (viola) e Pedro Morato (viola-baixo).
- - - 
Eis as letras, na sequência com que foram cantadas em 1999 e 2000

QUEM É O CHICO DO CACHENÉ

O "Chico do Cachené"
Tem sempre um grãozinho n’asa
É o Faia mais fadista
Que "habita" na minha casa


Com ele nunca houve tricas 
Nem intrigas, nem sarilhos
Gostam dele, e os meus dois filhos 
Tanto o Licas como o Tricas
Dizem que amou certa Micas 
Que poucos sabem quem é 
E que ela passou o pé 
Deixando quase no esquife
Num quarto do "Bairro Bife"
O "Chico do Cachené"

Sempre mãos nas algibeiras 
Sorriso sempre na "lata"
Na boca sempre a beata 
P'ra lhe dar "tic" às maneiras
Atira-se às cantadeiras 
E já marcou entrevista
A certa mulher bairrista 
Que a altas horas lá cai
Quem for com ele mal não vai
É o Faia mais Fadista

Dizem que aquele chapéu 
Que o cachené e a tralha
E que também a medalha 
Foi a Micas que lhe deu
Dês' que ela desapareceu 
P'ra se atolar mais na vasa
No peito dele, uma brasa 
Abrasa-lhe o coração
Pobre Faia. Desde então
Tem sempre um grãozinho n’asa

Outro dia, um badameco 
Armou por lá uma cena
Lá porque a sua pequena 
Estava a olhar p'ra o boneco"
Ele olhou o "Papo Seco" 
E nisto, o "pipi" foi d'asa
Com ele ninguém faz vasa 
E ainda mais o admiro
Porque é o tipo mais "giro"
Que "habita" na minha casa

O CHICO DO CACHENÉ


Certa vez, foi à noitinha 
O Chico do Cachené
Chamou-me e disse: «Farinha
Vou contar-te a vida minha 
Para saberes como é

Bem criado e mal fadado 
Os meus pais tinham de seu
Por eles era adorado 
Instruído e educado 
Cheguei a andar no liceu

Ao estudo tomei horror 
Era p’ra mim um suplício
Deixei aula e professor
Fui p’ra aprendiz de impressor
Para uma casa do ofício

Eu era menino e moço 
Simples como uma donzela
’Té que um dia – que alvoroço 
Fui à Travessa do Poço
Vi a Micas, gostei dela

A casa não voltei mais 
Meus pais tiveram desgosto
Calcula: deixei meus pais 
Preso nos olhos fatais 
Que a Micas tinha no rosto

Com ela aprendi o Fado 
O Fado a que te dedicas
Mas sempre, sempre empregado
Que, p’ra mim, era um pecado
Viver à custa da Micas

Vivi assim alguns anos 
Quatro vezes lhe pus casa
Mas o seus olhos tiranos
Vadios como dois ciganos 
Fugiam, batiam asa

Muita vez a fui buscar 
Às ruas do outro «fado»
Um dia, p’ra não voltar
Fugiu... É que o seu olhar 
Tinha que ser desgraçado

Hoje não tenho um afago 
Um carinho, uma afeição
Sou um esquecido, mal pago
É no vinho que eu apago 
O fogo desta paixão

Depois de contar-me a vida 
O Chico pôs-se de pé
Pediu mais uma bebida
E uma lágrima atrevida 
Caiu-lhe no cachené

A MICAS ERA UMA JÓIA

Todos cantam a odisseia 
Do Chico, com simpatia
Mas ninguém diz que, ao velhaco
Quando estava na cadeia 
Era a Micas quem lá ia
levar onças de tabaco

Não vivia à custa dela 
Não fazia dela escrava
Louvo-lhe esses sentimentos
Mas muita, muita farpela 
Era a Micas que a comprava
Numa loja, a pagamentos

A Micas era uma joia 
Leviana, sim, talvez
No fundo, uma desgraçada
Certa vez, numa ramboia 
Por nada que ela lhe fez
Ele moeu-a à pancada

Resultou, dessa tareia 
Da forma de a agredir
O ser preso... e até se diz:
Só esteve um mês na cadeia 
Porque a Micas foi pedir
por ele, ao Doutor Juiz

Também se deu um sarilho
Muito grande, entre ela e ele:
A mãe dela mo contou 
A Micas tivera um filho 
Um filhinho que era dele
E que ele não perfilhou

Não vim para a defender 
Nem levantar-lhe degrau
No trono das desgraçadas
Mas costuma-se dizer 
Que quando cachorro é mau
Todos lhe atiram pedradas

BÊBADO, BATOTEIRO E DESORDEIRO


Ele ganhava um quartinho
Era sempre o que ganhava
Mas gastava tudo em vinho!
E às vezes não lhe chegava


Conheci-o, meus senhores 
De "setenta", de "ginjeira"
Numa banca pataqueira 
Ali p'ra os Restauradores
Como tod'os jogadores 
Andava sempre a caminho
Da tavolagem, pró "pinho" 
Sempre a pedir emprestado
Mas não era precisado
Ele ganhava um quartinho

Entrou na Dança da Bica 
Lembro-me, era eu criança
Fez com que acabasse a dança 
E foi parar à Botica
Uma outra vez, em Benfica 
Em que o Brito improvisava
Ameaçou quem lá estava 
E desafiou uns poucos
Por fim, apanhou dois socos
Era sempre o que ganhava

A Micas gostava dele 
Chamava-lhe o "seu menino"
Sei que lhe deu um varino 
Com uma gola de pele
Deu-lhe um relógio, um anel 
'Té o próprio "pianinho"
Em que tocava o fadinho 
Ela lho dera também
O Chico ganhava bem
Mas gastava tudo em vinho

O "Chico do Cachené" 
É tatuado no peito
Prestou-se a isso o sujeito 
Quando esteve em S. José
Se isto é verdade, ou não é 
Não sei: era o que constava
A "massa" que lhe emprestava 
O Samuel agiota
Era toda prá batota
E às vezes, não lhe chegava

AS MÁS COMPANHIAS


O Chico fez tropelias
E deu aborrecimentos
Só devido às companhias
E não aos seus sentimentos


Cantava o Fado, era faia 
Bebia, jogava à chapa
Mas sempre vestia capa 
Pelo círio da Atalaia
A Micas era da laia 
Das que fazem judiarias
Duma vez andou dez dias 
Afastada do cortiço
Como não gostava disso
O Chico fez tropelias

Certa vez que o Chico foi 
Às toirinhas em Palmela
Era ouvir o grito dela 
O meu Chico hoje é um boi
Sou mulher, Deus me perdoe 
Que este e outros argumentos
Venham a ser elementos 
P’ra quem o Chico processa
A Micas era má peça
E deu aborrecimentos

Numa certa terça-feira 
Foram ambos para a esquadra
Porque na Feira da Ladra 
Ela armou em desordeira
Fora que a Júlia Cesteira 
Adela nas Olarias
E dava ali os «bons-dias» 
Pisou a saia da Micas
O Chico meteu-se em tricas
Só devido às companhias

Outra vez, p’lo Carnaval 
Foram ao baile à Trindade
Pois diga-se à puridade
Que ambos não dançavam mal
Um guarda municipal 
Disse dois atrevimentos
O Chico deu-lhe dois «tentos» 
E tudo isto presume
Que levou tudo ao ciúme
E não aos seus sentimentos

BOÉMIO, VALENTE E ARTISTA

Vingava a honra ofendida
Tinha uma alma altruísta
Antes do Fado ser Arte
Já a Chico era um Artista


Certo "Amigo de Peniche” 
Que ele julgava uma jóia
Viu-o ele de tipóia 
Com a Micas, em Carriche
Viu-os, aguentou-se fixe 
Mas não gostou da partida
Depois, 'spancou a atrevida 
E o amigo de má-fé
Era assim o «Cachené»
Vingava a honra ofendida

Teve amigos verdadeiros 
Escritores e doutores
Tu cá, tu lá, com atores 
Tu lá, tu cá, com toureiros
Deu-se até com Conselheiros 
E com muito Jornalista
Foi o melhor "Cancanista" 
Do Baile dos Quintalinhos
E, entre vários pergaminhos
Tinha uma alma altruísta

Em noites de S. João 
Passava noites inteiras
Dançando valsas rasteiras 
Mazurcas, Polca a Tacão
Palhinhas e jaquetão 
Calça branca, ou de zuarte
Nas feiras, por toda a parte 
Com titulares, com ciganos
Passou-se isto há trinta anos
Antes do Fado ser Arte

Jogava o Pau e à Espada / Em qualquer jogo, era rijo
Uma tarde, no Montijo / Varreu a Vila à paulada
Em muita espera e toirada / Deixou a perder de vista
Muito forcado burlista / E, nos sectores da "Canção"
'Inda não davam cartão
Já o Chico era um Artista

SENTENÇA

O Chico do Cachené 
Já todos sabem quem é
É um boneco inocente
Sem gestos, sem atitudes 
Sem defeitos, sem virtudes
Um boneco, simplesmente

Concebido e modelado 
P’la nossa imaginação
Com barro de fantasia
É um sopro do passado 
Um pouco de tradição
De sonho e de poesia

Criámo-lo à nossa imagem 
Com mais ou menos verdade
Somos os seus criadores
Rendemos-lhe vassalagem 
Porque fala de saudade
E até dos nossos amores

Pretendemo-lo julgar
Vimos que ele era, porém
Filho do meio ambiente
E que era um caso vulgar
Era um tudo de ninguém
Um nada de toda a gente

Ninguém com certeza ignora 
Que estivemos evocando
A tradição, o passado
Bendita esta «Boa-Hora» 
Onde estivemos brincando
Com as guitarras e o Fado

Não se provou a má fé 
Nos pecados do arguido
Que as paixões não nos iludam
O Chico do Cachené 
Está, portanto, absolvido
«Leis do Fado não se mudam»

Linhares Barbosa ainda escreveu mais uma letra 
sobre o «Chico do Cachené» para o cartaz que anunciava 
a representação de 1948 no Café Luso, intitulada 
"Alguns Comentários" onde fazia a apresentação do elenco 
e onde se vê que alguns dos fadistas e instrumentistas 
da primeira representação foram substituídos:

LEIS DO FADO NÃO SE MUDAM
(Bocage)

O Chico, mais uma vez
Foi preso e vai ser julgado
«Leis do Fado não se mudam»
Reza um antigo ditado


Cumprindo das leis o uso 
O Chico vai a Juízo
Porque o juízo é preciso 
E o Chico ao juízo é escuso
Vai ser julgado no «Luso» 
Lá para o fim deste mês
Será punido?... Talvez! 
Esperemos que a Justiça fale
Enfim, vai a tribunal
O Chico, mais uma vez

Já anda metendo cunhas 
Para não ser condenado
Mas não leva um advogado 
Um daqueles que tem «unhas»
Conhecem-se a testemunhas 
É tudo gente do Fado
Vai a Lourdes do Machado 
O Farinha, o Gabino
Pobre faia!... É o destino!
Foi preso e vai ser julgado

Vai o Jacinto Pereira 
Que o deseja ver na montra
E também vai depor contra 
A Natália, a galinheira
A Márcia, outra cantadeira 
Vai pedir que ao Chico acudam
Mas estas coisas não grudam 
Nem convencem os jurados
O Chico tem seus pecados.
«Leis do Fado não se mudam»

Sempre metido na «Adega 
Do Machado», o infeliz
Comia e bebia a «giz» 
E apanhava a sua cega
O Flávio, este não sossega 
O Amando anda enervado
O Nery, vai estar ao lado 
Do Chico do Cachené
O que nos salva é a Fé
Reza um antigo ditado

Jardim perdido

António Cálem / José António Sabrosa
Repertório de Miguel Sanches


Nunca mais será assim
Foi fechado o meu jardim
Aos teus olhos que o abriram
Rosas morreram em mim
Cravos, lírios e um jasmim
Que por tuas mãos floriram

Tudo morreu ao sol pôr
O fruto do teu amor 
Nas minhas mãos desunidas
Afastou-se o arvoredo
E descobriu-se o enredo 
Enredando as nossas vidas

Fechado o jardim da infância
Em que agora é já distância 
O calor dos teus abraços
Agora não sou ninguém
Talvez a sombra de quem 
Deixou luz entre os teus passos

Já sem voz

António Cálem / Pedro Rodrigues
Repertório de Carlos Barra


Já sem voz p’ra te cantar
Lágrimas p’ra te chorar
Como é triste a realidade
E lembrar-me a primavera
O sonho da tua espera
E a negrura da saudade

Hoje és minha e eu sou teu
Mas quanto em nós se perdeu 
Quando então éramos dois
Quanto mais longe mais perto
E o nosso amor encoberto 
Deixou-nos assim depois

Não me peças mais canções
É que os nossos corações 
Deixaram já de bater
Todo o amor é amizade
E o sonho apenas saudade 
Saudade doutro viver

Ouvir gaivotas

António Cálem / Alvaro Duarte Simões *meia noite e uma guitarra*
Repertório de João Braga


Que triste é ouvir gaivotas
No longe dos oceanos
Que triste é perder as rotas
Neste mar de desenganos

Ai que dor é ser o mar 
Este mar que não tem fim
E que dor é naufragar 
Sozinho, dentro de mim

Ser eu só além da bruma 
Todo o frio que me invade
E morrer em branca espuma 
No mar largo da saudade

Ai que triste é ouvir gaivotas 
No longe dos oceanos
Que triste é perder as rotas 
Neste mar de desenganos

Saudade de ninguém

António Cálem / Helena Maria Viana *fado lenitivo*
Repertório de João Braga


O voar duma gaivota
Traçou pelo ar a rota
Que o mar teve ao te deixar
Ficaram rochas perdidas
Algas na praia esquecidas
E ondas p’ra te cantar

Duas asas e um adeus
Longe da terra ou dos céus 
São sinais de despedida
Eu sonhei ser mais além
Sonhei azul, não sei bem 
Se era sonho ou era vida

Mas a gaivota partiu
E o meu olhar que a seguiu 
Partiu com ela também
Ficou esta praia nua
A noite negra sem lua 
E a saudade de ninguém

Voltei a teu lado

António Campos / Armandinho *fado manganine*
Repertório de Alice Maria


P’ra quê falar do passado
Que ficou lá na distãncia
Voltei, estou a teu lado
Só isso tem importãncia

Não perguntes onde andei
Nem o que fiz por aí
Não perguntes que eu não sei
Onde andei longe de ti

Andei na noite vagando
Em labirintos medonhos
Andei por aí, tentando
Acordar-me dos meus sonhos

Andei por aí sem norte
Andei por aí vencida
Andei tão perto da morte
Que esqueci a própria vida

A tua sina

António Cálem / Popular *fado corrido*
Repertório de João Braga

Para quê sonhar futuros
Na sina que não leremos?
Sonhar são os quatro muros
Desta casa onde vivemos

Para quê montes distantes 
Pedaços da cor do céu
Viver são estes instantes 
Do meu corpo ao pé do teu

A palma da tua mão 
Depois das linhas que li
Trago-a eu no coração 
Desde a hora em que te vi

A sina da tua mão 
Aquela que Deus te deu
Por mais que digas que não 
A tua sina sou eu

Porque choraste por mim

António Cálem / António Barbeirinho *fado porto*
Repertório de José Pracana


Porque choras por me ver?
Não sabes que o amanhecer
Traz a esperança doutro dia?
Porque choraste por mim
Se ainda há flores neste jardim
E amor noutra poesia?

Cantaste o fado e choraste
Porque a letra que cantaste 
Era minha por ser tua
Falava em tempos passados 
Em dois corpos abraçados 
Falava da nossa rua

E foi por falar assim 
Que tu choraste por mim 
Quando era já madrugada
Não cantes mais este fado
Lembra-te de que o passado 
É só passado e mais nada

Porque me visto de fado

Alexandrina Pereira / Popular *fado menor*
Repertório de Deolinda de Jesus


Ao respirar madrugadas
Atiro ao chão meus cansaços
E as minhas mãos agitadas
Sentem a fome de abraços

Sinto na alma o vazio 
Como barco naufragado
Sinto o gelo, sinto o frio 
Por não me vestir de fado

Na ausência vi nascer 
Uns estranhos sentimentos
Mas não me deixei perder 
No eco dos meus lamentos

Mas a tormenta passou 
E o sol voltou a raiar
O vendaval amainou 
E eu voltei a cantar

Quase morte

António Cálem / Popular *fado corrido*
Repertório de João Braga


Horas e horas que passam
Que passam sem te passar
Horas e horas que matam
O sonho de te sonhar

Como se fora um punhal 
O luar fere o jardim
É noite morta lá fora 
Quase morte dentro em mim

Passo assim horas inteiras 
A sonhar os teus abraços
Vão-se as horas ficam penas 
Entre ilusões e cansaços

Primavera… Primavera 
E há só frio no meu ser
Quem me dera ser quem era 
Antes de te conhecer

Nada me fala de ti

António Cálem / Pedro Rodrigues *fado primavera*
Repertório de Fernando Marques de Oliveira


Nada me fala de ti
Nem este fado que ouvi
Trouxe a tua mocidade
Nem o eco que eras dantes
Seres tu em mim por instantes
Ser eu em ti em saudade

Que doce era o anoitecer 
E o sol ao longe a morrer
Quando teus olhos se abriam
E que doce era fechá-los 
Mais doce ainda beijá-los
Quando de mim se esqueciam

Como era azul do luar 
O teu corpo junto ao mar
Que em certa noite eu vi
Como o relembro hora a hora 
Se não sei de ti agora
Se ninguém fala de ti

Para quê?

António Cálem / Armando Machado *fado licas*
Repertório de João Braga


Sinal de ti em cada esquina nua
Do vento que hoje passa sem te ver
Talvez saudade de ainda ouvir: sou tua
Talvez a voz do vento a responder

Talvez que a noite morta vá fugindo
Fugindo ao lado de mim ou de ninguém
Para quê eu dizer sim, se é só mentindo
Para quê eu dizer não, se morre alguém?

Deixa passar a noite ao nosso lado
Sonhar outro luar, outro jardim
Porquê seres tu amor e o pecado
Se a vida já morreu dentro de mim

A força com que me dei

Alexandrina Pereira / Pedro Rodrigues
Repertório de Deolinda de Jesus


Barco à deriva no rio
Deixa na alma este frio
E um desespero profundo
Num risco de raiva e medo
Cantei amor em segredo
Na demência deste mundo

Dissimulada loucura
Que no meu olhar procura 
A força com que me dei
Aos meus dias mais tristonhos
Guardando todos os sonhos 
Nos poemas que inventei

E os meus sentidos imersos
Foram rasgando os meus versos 
Nas margens da minha vida
E em cada hora de engano
De um rio fiz oceano 
Com ondas em fim de vida

Esta dor que me inquieta
Vem da alma de um poeta 
Que dá vida a qualquer tema
Eu sou grito que desperta
Sou quem deixa a porta aberta 
Para entrar qualquer poema

Último adeus

António Cálem / Armando Goes *fado da saudade*
Repertório de João Braga


Queria tanto que este adeus
Não fosse de despedida
Mas tenho medo do mundo
Mais que do mundo, da vida

Nada mudou entre nós 
Nem o abraço da partida
Mudou só a tua voz 
Nesse adeus de despedida

E hoje vivo a sonhar 
O mundo que nos perdeu
Vivo da luz do luar 
Já que o sol se me escondeu

Nem mesmo sei se é viver 
Já que perdi o meu norte
Penso em ti e é morrer 
Penso em mim e vejo a morte

Passado

António Cálem / Armando Machado *fado cigana*
Repertório de Humberto Sotto Mayor

Ter-te em mim mas sem perfume
Queimado, queimado lume
Fogueira agora apagada
Cinza que foi chama ardente
Cinza dum amor ausente
Cinza apenas e mais nada

O calor que outrora deste
A chama que me acendeste
Para te cantar este fado
É hoje cinza apagada
Cinza, terra, pó e nada
E um sabor triste a pecado

E esse fim que julgo ter
Neste triste anoitecer
Sem luar e sem estrelas
São auroras doutros dias
Ainda mais tristes e frias
Porque já não posso vê-las

Sempre será a vida

Alexandrina Pereira / Alberto Correia *fado solene*
Repertório de Deolinda de Jesus


As palavras que chegaram
Ao livro por escrever
Todas elas me chamaram
Ao sonho do meu viver

Nas páginas onde deixei 
As promessas por cumprir
E nas frases que inventei 
Um mundo por descobrir

E assim fui inventando 
Os meus sonhos e os meus dias
Nessas folhas fui deixando 
Tristezas e alegrias

Sempre assim será a vida
Como um livro inacabado
E em cada hora vivida 
É escrever o nosso fado

Para um fado de Coimbra

António Calém / Alvaro Duarte Simões *meia noite e uma guitarra*
Repertório de Fernando Gomes


Se choras de pura mágoa
Junto à linha do horizonte
Chora como as gotas de água
Que vão caindo da fonte

Com elas dá vida à terra
Dá frescura a toda a gente
Sê como o gesto que encerra
O lançar duma semente

Que a semente há-de dar sombra
No andar de mil estradas
Mas que não saibam que a sombra
Vem de lágrimas choradas

Encara a vida de frente

Alexandrina Pereira / Jaime Santos *fado alvito*
Repertório de Deolinda de Jesus


Em noites de Lua cheia
Fui escrever na fina areia
Os meus sonhos de menina
Veio uma onda mais forte
Que ditou a minha sorte
Que escreveu a minha sina

As nuvens vinham chegando
E o vento assobiando 
Uma estranha melodia
Dizia-me docemente:
Encara a vida de frente 
E da noite faz teu dia

Abre portas e janelas
Depois vê através delas 
Tudo o que a vida te deu
E deixa o tempo passar
Guarda sempre no olhar  
Esse mundo que é só teu

Agarra o sol e a lua
Depois desenha na rua 
O destino que escolheste
E verás que a vida é
Muito mais que amor e fé 
É o que dela fizeste

Sonho dourado

Fernando Teles / Popular *fado mouraria*
Repertório de Alfredo Marceneiro


Eu tenho um sonho doirado
Sonho que minha alma quer
Que é morrer cantando o fado
Nos braços de uma mulher


Que importa que digam mal 
Do meu lirismo romântico
E que censurem o meu pecado 
Amoroso sensual
Eu só desejo afinal 
Uma boca rosicler
Ou então ouvir gemer 
Uma guitarra em doce anel
É este um sonho tão belo
Sonho que a minha alma quer

As mais rudes penitências 
Que a sorte me pode dar
É não poder alcançar 
Do amor puras essências
Assim sofrendo inclemências 
Ao ver-se repudiado
Meu coração magoado 
Um só desejo inspira
É chorar ao som da lira
É morrer cantando o fado

Morrer dizendo os meus versos 
É isto que peço a Deus
Envolvendo os olhos meus 
Nuns olhos lindos, perversos
Beijos doirados, diversos 
Meu ser lascivo requer
E quando a morte vier 
Gelar enfim o meu sangue
Eu quero expirar exangue
Nos braços de uma mulher

Ser outono em primavera

António Calém / Júlio Proença *fado esmeraldinha*
Repertório de João Braga


Secura de te não ver como te via
Com esses olhos teus da cor do mar
Silêncio de não te ouvir como te ouvia
Cantando aberta à noite e ao luar

Loucura, de não seres o que eu sonhei
Cansaço duma vida que vivi
É este o novo mundo a que me dei
Depois desse teu mundo que perdi

É tarde para sonhar uma outra espera
E cedo para sonhar o entardecer
É triste ser Outono em Primavera
Florir aberto em lume e não arder

A tua porta

António Cálem / Carlos da Maia
Repertório de Teresa Siqueira


Se o bater da tua porta
Fechou a vida de alguém
Porque voltas, se é já morta
A saudade de ninguém?

Na rua ouço os teus passos 
Talvez que o teu coração
Mas fecharam-se os meus braços 
Dentro desta solidão

E agora nem sei se vivo 
Já que a esperança em mim morreu
Tu foste o sonho perdido 
Em que a perdida fui eu

Mais tarde, tempos passados 
Repara, repara bem
Se eu trago os olhos pisados 
Pela saudade de alguém

Morte ou vida, que me importa 
Depois da tua partida
Se o bater da tua porta 
Me pôs entre a morte e a vida

Não olhes outra vida

António Cálem / Miguel Ramos *fado margarida*
Repertório de Fernando Marques de Oliveira


Se queres morrer em mim de madrugada
Não olhes outra vida sem saber
Que o teu morrer em mim é alvorada
E noite, se viveres noutro qualquer

Há luz por entre a treva mais escura
E sombra entre o sol num claro dia
Há sede nesta fonte de água pura
E água nesta sede de poesia

Por isso eu hoje sei que a tua vida
Será enquanto eu for todo o teu fim
Fugir será o ponto de partida
Chegar será morrer dentro de mim

Encontro e solidão

António Cálem / José Marques *fado triplicado*
Repertório de João Braga


Dão-me tudo o que me negas
E nestas tuas entregas
Só encontro solidão
Todo o mundo se abre em flor
Mas em mim floresce a dor
Da tua separação

Todos me dão um abraço
Mas sinto apenas o espaço 
Em que tu foges de mim
Todo este Verão é de frio
P’ra lá da dor corre um rio 
Sem ter princípio ou ter fim

Salvam-se os sonhos vividos
Em que os meus cinco sentidos 
Viviam junto de ti
Hoje só resta o luar
Uma onda azul no mar 
E esta praia que perdi

Memória de Francisco Stoffel

António Cálem / Popular *fado menor*
Repertório de Ondina Sotto Mayor


Chorei por ti neste dia
Neste dia ou noite em mim
Chorar assim noutro dia
Só quando chorei por mim

Agora soube-te morto 
Fechaste os olhos à luz
E cravaram-se ao meu corpo 
Os cravos da tua cruz

E que triste é este Outono 
Sem a voz da Primavera
Mais triste é sonhar um sonho 
Sem promessas duma espera

Que outros cantem este fado 
A dizer que te perdi
E que chorem ao cantá-lo 
Como hoje chorei por ti

Chorei por ti neste dia 
Neste dia ou noite em mim
Chorar assim noutro dia 
Só quando chorei por mim

Rosa agreste

António Cálem / Raúl Pinto
Repertório de João Braga


Foi a rosa que me deste
Uma rosa, rosa agreste
Uma rosa perfumada
Depois perdi-a de mim
Deixei-a entregue ao seu fim
E dela não sei mais nada

Só o teu gesto ainda dura
Na tua mão a ternura 
Mais que a ternura o amor
Passaram as manhãs d’outrora
E ficou de ti agora 
O teres-me dado essa flor

Foi o teu gesto inspirado
Que trouxe a mim este fado 
E aquela rosa perdida
Hoje só resta o jardim
E uma saudade sem fim 
De que é feita a minha vida

Num sonho que passa

Alexandrina Pereira / Carlos Heitor da Fonseca
Repertório de Deolinda de Jesus


Quando o amor chegou serenamente
Abri as portas do meu coração
No céu dormia uma estrela indiferente
No meu tempo de sonho e ilusão

Foi hora de crescer com a certeza
Que o amor é sede num jardim
Momento p’ra sentir toda a beleza
De um fado que em segredo diz assim

Sou gota de água 
Num jardim sem mágoa
De um dia a nascer
Sou cardo sou rosa
Poesia e prosa
Amor por viver

Sou o sol poente 
Na fonte nascente
Ave que esvoaça
Sou breve momento 
Ao sabor do vento
Num sonho que passa


Quando a luz ilumina o pensamento
De quem só tem amor como ideal
Deixa subir o sonho com o vento
Num regaço-aconchego maternal

Palavras que dão cor ao meu sentido
Rio de amor com margem sem ter fim
Como um segredo dito ao meu ouvido
Como a voz do coração que diz assim

Partiu um dia

António Cálem / Francisco Viana *fado vianinha*
Repertório de João Braga


Partiu um dia sozinho
O sonho de te sonhar
E o sonho voltou comigo
Só depois de te encontrar

Sonhamos os dois então 
No laço das nossas vidas
Eu e tu éramos um 
Ou duas folhas perdidas

E sonhámos tanto, tanto 
Que os sonhos deram a mão
Eram o riso e eram o pranto 
Eram o corpo e o coração

Corremos p’la vida à sorte
E a sorte foi-nos perdendo
O destino disse morte 
E nós morremos vivendo

Minha mãe

Fernando Farinha / Armandinho *Fado Alice*
Repertório de Fernando Farinha


Minha mãe, quando te vejo
Sinto a vida que me déste
Renascer num terno beijo
Teus cabelos tão branquinhos
Ficam ainda mais belos
Ao sabor dos meus carinhos

Nos olhos teus
Que me falam de distância
Vejo as duas sentinelas
Que guardaram minha infância
E nos teus lábios
Sinto o calor que existia
Nos beijos que tu me davas
Quando em teu colo dormia


Minha mãe, o teu leve andar
Continua a ser a força
Que me obriga a caminhar
O teu rosto d´oiro fino
É qual espelho em que me vejo
E onde sou sempre menino

Darei amor
A quem meu amor merece
E desse amor eu farei
Uma chama que me aquece
Mas minha vida
Minha vida é bem diferente
Não a dou a mais ninguém
Será tua eternamente

Contraste

Carlos Conde / Joaquim Campos da Silva *fado estela*
Repertório de Frutuoso França


É longo e triste o calvário
De quem com arte e preceito
Gasta a vida a trabalhar
Olha p'ráquele operário
Que tantas casas tem feito
E sem ter onde morar

E tantos no ano inteiro 
Muitas vezes sem ter pão
Nem o calor de uma brasa
Repara nesse mineiro 
Que enche o mundo de carvão
E mal tem carvão em casa

Esta sonha a paz fagueira 
Numa vida calma e leda
Por ser pobre e ser bonita
Eis aqui a costureira 
Que faz vestidos de seda
E veste saia de chita

Ele há quem ande engatado 
Entre varais, feito lixo
Lamentando a sorte sua
Ele há tanto desgraçado 
A morder o pó do lixo
Que os outros lançam à rua

Neste contraste profundo 
Que se vê a cada passo
Onde a crença anda perdida
É que as riquezas do mundo 
Caminham de par e passo
Com as misérias da vida

A voz do meu silêncio

António Calém / Miguel Ramos *fado margarida*
Repertório de João Braga


E um dia a tua ausência há-de ficar
Mistério do que te amei ou não amei
Será apenas réstia dum luar
Na noite que jamais esquecerei

Talvez que seja o nada já distante
O prémio desses dias que perdi
Talvez que eu viva ainda nesse instante
Do dia em que me viste e eu te vi

E dessa hora é todo o mundo feito
Do nada que era apenas um olhar
O resto é tudo sombra no meu peito
Silêncio desta voz p’ra te cantar

E os sonhos são todos meus

Alexandrina Pereira / Joaquim Campos *fado rosita*
Repertório de Deolinda de Jesus


Faço da palavra, prece
Que beija os mares e os céus
Vou em busca dos meus sonhos
E os sonhos são todos meus


Em cada esquina da vida 
A minha alma se oferece
E se me sentir perdida 
Faço da palavra, prece

Nos meus dedos o alento 
Que sinto virem dos teus
Sou companheira do vento 
Que beija os mares e os céus

Os meus sentidos sozinhos 
Fazem meus dias tristonhos
Olho além outros caminhos 
Vou em busca dos meus sonhos

Se a nossa força se inventa 
Temos que ter fé em Deus
Enfrento qualquer tormenta 
E os sonhos são todos meus

Minutos contados

António Cálem / Francisco José Marques *fado zé negro*
Repertório de Miguel Sanches


Gostava tanto de ser
A flor que ao amanhecer
Cantou entre os meus sentidos
Saber que se abriu para mim
Ser ela só no jardim
Jardim dos passos perdidos

Trouxe-me um novo perfume
Outra cor e outro lume 
Que eu já pensara apagado
Sentir que sorriu ainda
E que disse que era minha 
Nos seus minutos contados

Flor tão breve, tão sozinha
Foi tu quereres ‘inda ser minha 
Que me trouxe a Primavera
De resto, o sol neste dia
Céu azul ou meio-dia 
Era só a tua espera

Trago o sol no meu peito

Alexandrina Pereira / Joaquim Campos *fado alexandrino*
Repertório de Deolinda de Jesus


Trago o sol no meu peito, foste tu que mo deste
Que nas margens do meu ser, logo se iluminou
Tenho um livro por ler, que tu me ofereceste
E em cada folha lida te vejo no que sou

Abro o meu coração, deixo a vida passar
Descubro em cada letra, tudo o que tu me dizes
Vamos escrever junto aquele verbo amar
Sem ter pontos finais e assim somos felizes

Com o passar do tempo, tanta coisa venci
Trago a fé no olhar, porque tu me ensinaste
E assim lado a lado confiante aprendi
A saber caminhar por onde tu andaste

Mas porque a vida tem, várias caligrafias
E porque os Oceanos parecem não ter fim
A paz que vem de ti dá sentido aos meus dias
Fazendo renascer o amor que há em mim

E decididamente

Mário Rainho / Angelo Freire
Repertório de Tiago Correia


E decididamente eu não pertenço aqui
Não sou dos dias d’hoje e d’ontem também não
Nem sou um grão de gente, que ainda não nasci
Só que o futuro foge de mim, como um ladrão

E decididamente o amanhã me tarda
Enquanto aqui, desalma o fantasma que sou
Tão assombrosamente, sem ter anjo-da-guarda
Nem um corpo com alma que por aí errou

Um projecto de mim, talvez seja inventado
Mas, enquanto demora a hora de ser gente
Ao nada ponho um fim, ao tudo peço o fado
De poder ir embora… e decididamente

Nada me fala de ti

António Cálem / Pedro Rodrigues *fado primavera*
Repertório de Fernando Marques de Oliveira


Nada me fala de ti
Nem este fado que ouvi
Trouxe a tua mocidade
Nem o eco que eras dantes
Seres tu em mim por instantes
Ser eu em ti em saudade

Que doce era o anoitecer 
E o sol ao longe a morrer
Quando teus olhos se abriam
E que doce era fechá-los 
Mais doce ainda beijá-los
Quando de mim se esqueciam

Como era azul do luar 
O teu corpo junto ao mar
Que em certa noite eu vi
Como o relembro hora a hora 
Se não sei de ti agora
Se ninguém fala de ti

Passam os dias, os anos

António Cálem / Joaquim Campos *fado Rosita*
Repertório de Miguel Sanches


Passam os dias, os anos
E és tu que hás-de ficar
A viver do desengano
De só te saber sonhar

É que eles passam sem fim
E contigo permanecem
É que há mundos que esqueci
Mas contigo não se esquecem

É que tu trazes aos dias
O que aos dias me faltava
O riso, as alegrias
Que o mundo já não me dava

Mas ninguém mais, somos nós
A sulcar o mar profundo
É que o mundo somos nós
E o resto nem sei se é mundo

Tudo ou nada

António Cálem / Miguel Ramos *fado freira e/ou oliveira
Repertório de João Braga


Tudo ou nada neste dia
Que é feito dessa alegria
Que outro dia me roubaste
Que é dos sonhos que sonhei
Do mundo que eu encontrei
Depois que tu me encontraste?

Diz-me o fim a que me levas
Se ainda há Primaveras 
E se as há, em que país?
Diz-me o longe prometido
Diz-me tu que eu não consigo
aber onde sou feliz

Traz o sol à minha vida
Diz-me essa tarde perdida 
Perdida por te encontrar
Dá-me tudo o que quiseres
Dá-me manhã, se puderes 
Ou noite p'ra te sonhar

Cantem um fado comigo

Alexandrina Pereira / Carlos Heitor Fonseca
Repertório de Deolinda de Jesus


Retardo no meu olhar
A correria da vida
E se a minh’alma vibrar
Retardo no meu olhar
A estrada já percorrida

É no silêncio das ruas
Que deixo os meus dialetos
Em noites de tantas luas
É no silêncio das ruas
Que visto a alma de afetos

Se um coração está triste 
Canta-se um fado
E se em nós a mágoa existe 
Canta-se um fado
Só tristeza não conforta 
É bom abrirmos a porta
Deixar entrar um amigo
Porque ser feliz mereço 
Com que emoção eu vos peço
Cantem um fado comigo


Vou e caminho sozinha
Escrevo no vento o meu fado
Desenho a vida que é minha
Vou e caminho sozinha
O meu poema inventado

No meu sentir tão profundo
Seguro os sonhos na mão
Na minha voz há um mundo
No meu sentir tão profundo
Dou asas ao coração

Manhã do desejado

António Cálem / Popular *fado menor*
Repertório de João Braga


Morrer sim mas devagar
Palavras vivas de morte
Pátria perdida além-mar
Fado nosso ou nossa sorte

E num deserto de areia 
Chamado Alcácer-Quibir
Morreu a pátria primeira 
P'ra noutra Pátria florir

Ali morremos deixando 
Sessenta anos de vida
Caravela recordando 
A velha História perdida

E em manhã de nevoeiro 
Essa manhã prometida
Viva ele de corpo inteiro 
Nas manhãs da minha vida

Aos poetas

Alexandrina Pereira / Armando Augusto Freire *alexandrino*
Repertório de Deolinda de Jesus


Sou a voz dos poetas
Porque eles me escolheram
Ponho na minha voz 
Os versos que escreveram
Coloco em cada letra 
Toda a minha emoção
Pois sinto que o poeta 
É alma e coração

Que seria do fado 
Sem as palavras certas?
Que seria do mundo 
Sem sonhos dos poetas?
Meu fado é vida inteira 
E traz-me a alegria
De ser a mensageira 
Da vossa poesia

Quem canta seu mal espanta

António Cálem / Alfredo Duarte *fado bailarico*
Repertório de Zé Caravela


Quem canta seu mal espanta
Mas há males dentro de nós
Que as cordas duma garganta
Não chegam p'ra dar-lhes voz


Quem esconde uma saudade 
Do olhar que a desencanta
É quem mais fala verdade 
Quem canta seu mal espanta

E um sentimento profundo 
Aumenta ao estarmos sós
Há outros bens neste mundo 
Mas há males dentro de nós

Porque as palavras reais 
Não bastam a quem as canta
E o silêncio vale mais 
Que as cordas duma garganta

Por isso os bens que perdemos 
Vivem só junto de nós
E as saudades que temos 
Não chegam p'ra dar-lhes voz

Tenho o mundo à minha espera

Alexandrina Pereira / Armando Machado *fado santa luzia*
Repertório de Deolinda de Jesus


Minha vida é vida inteira
E não encontro a maneira
Mais certa de a repartir
Reparto as horas do dia
Em tristeza e alegria
Entre o chegar e partir

Tenho o mundo à minha espera
Nas mãos tenho a primavera 
No olhar folhas de Outono
Abro as portas, vou sonhar
Deixo o meu corpo ficar 
Num doce e terno abandono

Deixo que o vento me leve
Onde o meu coração esteve 
E por lá ficou guardado
Beijando as horas do dia
Traz nas mãos a poesia 
E a melodia de um fado

Na incerteza do querer
Fica a certeza de ser 
Alguém que dá o que tem
Parte da vida é só minha
E assim ninguém adivinha 
Se eu sou a vida de alguém

Ressurreição

António Cálem / Miguel Ramos *fado alberto*
Repertório de Ondina Sotto Mayor


É estranha e bela a vida que me deste
E mais do que ela o mundo que me abriste
Depois de ter morrido, tu trouxeste
A alma a este corpo que ainda existe

Criaste um novo ser disperso ao vento
Para te escrever por fim esta poesia
Luar azul, estrela dum momento
Estrela em todo o céu que me alumia

Tenho medo que volte a madrugada
Tenho medo do sol, do claro dia
Que tudo o que és para mim não seja nada
E esta seja a última poesia