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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.285' LETRAS <> 3.120.500 VISITAS * MARÇO 2024 *

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Fado da Bica

Carlos Conde / Jaime Santos *fado da bica*
Repertório de Amália 

Quem diz que o amar que custa
Decerto que nunca amou
Eu amei e fui amada
Nunca o amor me custou


Fiando junto à lareira 
Dizia a avó à netinha
Ao tempo que esta mantinha 
O crepitar da fogueira

Meu amor, não há maneira 
De fugir à fé robusta
Da paixão que não assusta 
Quem pecou por ter amado;
Porque só cai em pecado
Quem diz que o amar que custa

A neta, ao ver-se enleada 
No seu intimo segredo
Apenas sorriu a medo 
E quedou-se envergonhada

Fingindo não dar por nada 
A avó continuou
Quis um dia ao teu avô 
Como ele me quis a mim;
E quem nunca amou assim 
Decerto que nunca amou 

A casa da Mariquinhas

Capicua / Alberto Janes *vou dar de beber à dor*
Repertório de Gisela João

Foi numa ruela escura que encontrei
A tal casa do fado *A Mariquinhas*
Que de Alfredo Marceneiro
Veio ao nosso cancioneiro
Como sendo uma casa de meninas

E com o tempo passado
Foi na voz da D.Amália
Que a casa foi da desgraça às ginginhas
E que mesmo com o fado renovado
Já não tinha nem sardinhas

Depois veio Hermínia Silva que cantou
O regresso da saudosa Mariquinhas
Mas foi sol de pouca dura
Que mesmo sem ditadura
Hoje em dia até as vacas são lingrinhas

Agora vêm meus olhos
Que nem amor nem penhor
Esta casa está mais velha que as vizinhas
As janelas ‘stão tapadas com tijolos
E as paredes ‘stão sozinhas

Só um gato solitário no telhado
E uma placa que ‘stá cheia de letrinhas
Vende-se, oca, esburacada
Por fora toda riscada
E encostada na fachada, uma menina

Mas esta não canta o fado
Só sabe fumar cigarro
E com o fuma, quando sopra, faz bolinhas
Não sabe quem já morou naquele espaço
Ou quem foi a Mariquinhas

E aqui estou à porta, desgostosa
Venda a casa que ‘stá morta e em ruínas
Por causa destes senhores
Até já nem tem penhores
Porque já ninguém tem ouro nas voltinhas

Mas se eu fechar os olhos
E imaginar as farras
Ainda se ouvem as guitarras e cantigas
Porque a casa é a canção que sei de cor
E vou cantar toda a vida

Moura encantada

Manuela de Freitas / Alfredo Duarte *fado cravo*
Repertório de Ana Moura 

É lenda, na mouraria
Que grande riqueza havia
Por uma moura guardada
Um dia alguém perguntou-me
Se a Moura que há no meu nome
É essa moura encantada

Não sei, só sei que me dou
E me esqueço de quem sou
Como num sono profundo
E nos sonhos que vou tendo
Eu adivinho e desvendo 
Todos os sonhos do mundo

A minha voz, de repente
É a voz de toda a gente 
De tudo o que a vida tem
Quando a noite chega ao fim
Vou à procura de mim 
E não encontro ninguém

Não sei se é lenda ou se não
Se é encanto ou maldição 
Que às vezes me pesa tanto
Sei que livre ou condenada
E sem pensar em mais nada 
Eu fecho os olhos e canto:
Serei talvez encantada
E sendo assim tudo e nada 
Eu fecho os olhos e canto

Canto da boca

Cátia Oliveira / Valter Rolo
Repertório de Liliana Martins 

Beijo no canto da boca 
Chamas e finjo de mouca
Faço rodar o vestido 
Num dia atrevido
Enrolo o cabelo no dedo 
Do escuro eu finjo ter medo
Peço que acendas a vela 
E a ponhas na janela

Gosto do teu jeito afoito, sim
E de ter quase os dezoito, tremo
Quando me mordes a orelha
Pouca vergonha *diz a velha*

Falo mansinho contigo 
Deixo espreitar o umbigo
Espalho na praça o jasmim 
Que te faz lembrar de mim
Deitas-te no meu regaço 
Despeço-me num abraço
Um beijo no canto da boca 
Não seja a saudade pouca

Meu amor que te foste sem te ver

Agostinho da Silva / Paulo de Carvalho
Repertório de Joana Amendoeira 

Meu amor que te foste sem te ver
Que de mim te perdeste sem te amar
Quem sabe se outra vida tu vais ter
Ou se tudo se perde sem voltar

Ou se é dentro de mim que tem de haver
Tanta força no meu imaginar
Que o poeta que é Deus o vá reter
E te dê vida e faça regressar

Para de novo o sonho desfazer
Num contínuo surgir e retornar
Ao nada que dá ser ao que é querer
Ao fado que só dá para se dar

Por tudo estou amor e merecer
O que venha para eu te relembrar
Só adorando o nada pretender
Só vogando nas águas de aceitar

Escada da vida

Carlos Conde / Júlio Proença *fado proença*
Repertório de Nuno de Aguiar 

Há três coisas, para nós
Que devem ser as que mais
Nos rodeiam de carinhos
Na infãncia, ter avós
Na mocidade, ter pais
Na velhice, ter netinhos

Um exemplo; avô e neto
Ternura em horas seguidas 
Entre saudades e esperanças
E deste amor amor, deste afeto
Um sorriso em duas vidas 
Amor em duas crianças

Outro exemplo: pai e filho
Conjurando horas incalmas
Sem pragas nem maldições
E desta luz, deste brilho
Sedução em duas almas 
Amor em dois corações

Que bom é trocar carinhos
Ao calor da mesma brasa 
Ao bem da mesma afeição
E todos, todos, juntinhos
Vivendo na mesma casa 
Comendo do mesmo pão

Barqueiro das estrelas

Artur Ribeiro / Miguel Ramos *fado margarida*
Repertório de Artur Ribeiro 

Até quando, barqueiro das estrelas
Até quando me sinto coisa a mais
Até quando serei barco sem velas
Até quando navego sem ter cais

Até quando me gasto em falso fumo
De fogueiras que não quis acender
Até quando vagueio noutro rumo
Que só me leva a quem não quero ser

Até quando verei à minha volta
O mundo ajoelhar perante o mito
Quando será meu grito de revolta
Ouvido para cá do infinito

Barqueiro das estrelas, até quando
O contrário da lei que nos trouxeste
E este deixar que as aves do teu bando
Me neguem o lugar que tu me deste

A vida passa depressa

Fernando Gomes dos Santos / Raul Portela *fado magala*
Repertório de Liliana Martins 

A vida passa depressa 
Não te percas no caminho
Quem se perde não regressa
Chega ao fim sempre sozinho

Andas por aí à toa 
Porque te julgas audaz
Mas olha que o tempo voa 
E nunca mais volta atrás

Só pensas noutras mulheres 
E é atrás delas que vais
No dia em que me quiseres 
Já será tarde demais

Quando acordares no escuro 
Co’a solidão a teu lado
Verás que perde o futuro 
Quem se perdeu no passado 

Retalhos

Ary dos Santos / Tozé Brito
Repertório de Carlos do Carmo

Serras, veredas, atalhos 
Fragas, estradas de vento
Onde se encontram retalhos 
De vidas em sofrimento

Retalhos fundos nos rostos 
Mãos duras e retalhadas
Pelo suor do desgosto 
Retalha as caras fechadas

No caminho que seguiste 
Entre gente pobre e rude
Muitas vezes tu abriste 
Uma rosa de saúde

Cada história é um retalho
Cortado no coração
De um homem que no trabalho
Reparte a vida e o pão;
As vidas que defendeste
E o pão que repartiste
São lágrimas que tu bebeste
Dos olhos de um povo triste 


E depois de tanto mundo 
Retalhado de verdade 
Também tu chegaste ao fundo 
Da doença da cidade

Da que não vem na sebenta 
Daquela que não se ensina
Da pobreza que afugenta 
Os barões da medicina

Tu sabes quanto fizeste 
A miséria não segura
Nem mesmo quando lhe déste 
A receita da ternura

Voar a dois

Maria Manuel Cid / Miguel Ramos *fado alberto*
Repertório de Matilde Pereira 

Amar é ser criança a vida inteira
Amar é ser assim como um cristal
É ver abrir em flor uma roseira
E ver a vida à luz de um ideal

Juntar partes iguais da mesma vida
Dois corpos num só corpo confundir
Fechar com beijos loucos uma ferida
E as portas da coragem reabrir

Deixar passar o vento no telhado
Sem nunca abandonar o mesmo ninho
Sentir que vai seguro e amparado
Chegar ao fim sem desviar caminho

Sentir o coração batendo certo
Com outro coração ir a compasso
Seguir na escuridaão destino aberto
Poder voar a dois no mesmo espaço

Ninharia

Maria do Rosário Pedreira / Carlos da Maia
Repertório de Ana Moura 

Foi nessa noite maldita
Que abri a porta à desdita
De que só eu sou culpada
Precipitada, incontida
Expulsei-te da minha vida
Por uma coisa de nada

Quando ela vinha a passar
Cismei ver no teu olhar 
Um brilho que me ofendia
E logo rompi os laços
Atirei-te p'rós seus braços 
Só por essa ninharia

O que fiz não tem remédio
Tudo é solidão e tédio 
Não mereço ser feliz
Porque não fui eu capaz
De logo voltar atrás 
E desfazer o que fiz?

Agora, quando te vejo
Suspiro pelo teu beijo 
Mas nem pergunto aonde vais
Chamo baixinho o teu nome
Na culpa que me consome 
Mas sei que é tarde demais

Cai a noite

Cátia Oliveira / Manuel Graça Pereira
Repertório de Liliana Martins 

Espero-te à saída
Dando por perdida 
Cada hora triste que passei
Sussurras “Margarida”
Amor da minha vida
E o corpo imerso no abraço que te dei

Mas porque é que partes céu afora?
Leva-me contigo, leva-me embora

Cai a noite longa na cidade
Dos amores perfeitos
Na mais longa noite da saudade
Bebem-se sonhos insuspeitos 


Cedo a despedida 
Chega desabrida 
E dilacera o coração sem lei
Sussurras "Margarida" 
A frase repetida 
Perdoa, dou-te o melhor que sei

Mas porque é que partes céu afora?
Leva-me contigo, leva-me embora

Cai a noite, veste-se a cidade
Na luz que se espelha
O amor demais leva a vontade 
E dói a sorte que nos calha

Sonhei com Amália

Eduardo Rebelo / Cavalheiro Jnr. *fado menor do porto*
Repertório de Luís Caeiro 

Um dia destes sonhei
Que vi a Amália rezar
O que ela rezou não sei
Sei que rezou a cantar

Cada fado era uma reza 
Estava sempre em oração
Com alma bem portuguesa 
E fados no coração

É por isso que cantava 
Com os olhos bem fechados
Cantava enquanto rezava 
Pois rezava a cantar fados

A sua voz de cristal 
Que Deus lhe deu p'ra cantar
Tinha algo celestial 
E assim cantava a rezar

E quando se despediu 
No meio de tanta saudade
O fado que o mundo sentiu 
Tornou-se bem da humanidade

Agora é que é

Letra e música de Pedro Abrunhosa
Repertório de Ana Moura 

Faltam palavras p'rá loucura do momento
Alguém mentiu no juramento 
Alguém nos trouxe este pesar
Salvem as pratas pela porta do jumento
Já não temos muito tempo 
E ainda havemos de dançar

Não houve balas, nem vontade de atirá-las
Não faltam bate-palas 
A quem nos traz tanto penar
Houve promessas e agora faltam peças
Levam louças e sanefas 
Cuidado, querem voltar

Agora é que é
Agora é que é
Ou fazemos malas 
Ou fazemos marcha à ré
Agora é que é
Agora é que é
Ide lá buscá-las 
E quem caiu ponha-se em pé

Houve canasta e uma gente muito casta
Um ar sisudo é quanto basta 
Cair nas graças da vizinha
Vinham de fato engomado na gravata
À mesa com quatro facas 
E uns alarves na cozinha

E houve festa de gente que se detesta
Eu não tenho um T na testa 
Que bem os via na vidinha
Foi-se a saúde com os galãs de Hollywood
Maracas e alaúde 
E agora toca a dançar

Já não me lembro se foi num dia de Setembro
Já nem sei se era membro 
Ou se lá estava por azar
Abram as comportas que frio vem dessa porta
Tanta gente a dar a volta 
E o baile vai começar!

Veio a justiça, chegou à cavalariça
Ao cavalo ninguém atiça 
Não vá o chão empinar
Fizeram frete de apreender o canivete
Com o sabre ninguém se mete 
Há tanta história p'ra contar

Chegou a fome de tirar a quem não come
De vender até o nome 
Por tuta e meia e um jantar
Virar faisões, comprar porta-aviões
Vou ali contar tostões 
Ai que vontade de mandar

Como nos romances de cordel

Tiago Torres da Silva / Valter Rolo
Repertório de Liliana Martins 

Ai, Lisboa, quem me faz a corte? 
Ai. Lisboa, quem me quer casar?
Ai, Lisboa quem vai ter a sorte
Ai, de me levar ao altar?
 

Na Igreja de Santa Luzia
Fiz promessas que não vou cumprir
Eu prefiro ir à romaria
Namorar com quem me faça rir 

E se tu me atiras num piropo
Uma quadra ao gosto popular
É possível que eu não te dê troco
Se no final a quadra não rimar 

Um Manel por cada Maria
Dez Marias por cada Manel
Não me digas que eu fico p’ra tia
Como nos romances de cordel 

Se assim for, Lisboa que me minta
Sei que o tempo corre a meu favor
Mas depois que a gente chega aos trinta
Até o tempo perde o seu esplendor 

Quem me fez promessas de alegria
Foi prá guerra mas não vai voltar
Sempre soube que não voltaria
Mesmo assim, fartei-me de o esperar 

E agora vou pró bailarico
Vou de braço dado a mais ninguém
Mas sozinha em casa é que eu não fico 
Que a solidão nunca me caiu bem

Tango de um amor proibido

Paulo Espírito Santo / Valter Rolo
Repertório de Liliana Martins 

A minha rua sente-se tua
Sempre que passas para me ver
E até a lua te espera nua
Nestas vidraças para te ter

E a sorrir eu sinto-te a chegar
Abro a porta, quero-te abraçar
Amo a noite 
Porque ela te traz p’ra mim

E danço contigo um tango perdido
Que o sol jamais verá
Amor proibido, o céu prometido
Que nunca se abrirá
És minha vida 
E o tudo que eu não terei
Ser toda em ti
Eu nunca o serei

E fica a lua dona da rua
Quando, minguante, te vê sair
E eu que sou tua, sinto-me nua
No frio instante do teu partir

Nasce o dia e volta a contrição
Cada aurora chama-me à razão
Mas eu bem sei 
Que p’ra te ter só mesmo assim

Trechos da boémia antiga

Carlos Conde / Armandinho *fado alexandrino antigo*
Repertório de Raúl Pereira 

Pronto, aqui tens um xaile, uma saia de barra
Chinelas de veludo e lenço de tricana
Agora vem daí, traz a tua guitarra
E vamos passear naquela traquitana

Vais ver como é bonito um faia à tua ilharga
Como o fado se canta e a fama se conquista
Eu levo a calça justa, o chapéu d’aba larga
As botas de verniz e a samarra à fadista

Manda agora bater a tipóia prás hortas
Quero um retiro bom, que tenha tradições
Hoje vamos os dois jantar fora de portas
Peixe frito, salada e vinho em canjirões

Sentemo-nos aqui, dizem que há malandragem
Rufias de navalha a par da fidalguia
Porém, a maior parte, é toda fadistagem
E uma guitarra vence a naifa de um rufia

Que tarde se passou, de fado e de rambóia
Mas desce agora a noite e nós vamos num salto
Mandar bater de novo essa velha tipóia
E cear numa adega ali do Bairro Alto

Porque será

Jorge Rosa / António Chaínho
Repertório de Alice Maria 

Porque será 
Se há tantos olhos bonitos
Que os meus olhos andam fitos 
Apenas no teu olhar
Porque será 
Tanta boca a pedir beijos
E a minha só com desejos 
Da tua boca beijar

Porque será, porque será
Que anda desde que te vi
A minh’alma ao Deus-dará
Porque será, porque será;
A não ser gostar de ti
Outro motivo não há

Porque será 
Se há tanta linda figura
Só a tua é que perdura 
No meu pensar, noite e dia
Porque será 
Se há caminhos desiguais
Somente p’ra onde vais 
O meu caminhar me guia

Deste-me o teu corpo

Fernando Gomes dos Santos / Carlos da Maia *fado perseguição*
Repertório de Liliana Martins 

Fui lume que não queimava
Candeia que se apagava
Iluminar não podia
Deste-me o teu corpo-chama
No frio da minha cama
E da noite fiz-me dia

Fui um navio sem mar
Tolhido, de navegar 
Nas marés altas da vida
Deste-me o teu corpo-água
Que me afundou toda a mágoa 
E foi meu cais de partida

Já fui árvore sem chão
Fincada na solidão 
Das florestas que desfiz
Deste-me o teu corpo-terra
A força em que se descerra 
A minha nova raiz

Fui uma alma vazia
Um peito que se escondia 
Num canto calado e escuro
Deste-me o teu corpo-fado
Para cantar o passado 
Mas com a voz no futuro

Desamparo

Letra e música de Márcia Santos
Repertório de Ana Moura
                                                                    
Tenho sentido um desamparo
No meio do meu coração
Fica o sentido pouco claro
Ser lhe falta a emoção;
Um coração apaziguado
Perde muita tensão

Dei um segundo ao meu amado
P’ra me vir ali buscar
Tenho buscado o meu contrário
Em quem eu me quero dar;
Vim dar a um lugar errado
Que me pousa a pensar

Nem mais um passo
Ficarei onde o breu se desfaça
Como uma névoa que vem
Como uma névoa que passa

Tenho pensado um bom bocado
No tempo que há-de passar
E onde foi no meu passado
Que tive o dom de sonhar;
Sonho que corro pelo prado
Até o sol me queimar

Dei mais um passo para o meu canto
Para os males afastar
Quero o canto em que me fecho
P’ra não mais me fechar;
Sonho que fujo pelo Tejo
Até o mar me abraçar
Que eu mais não faço
Ficarei onde o breu se desfaça
Como uma névoa que vem
Como uma névoa que passa

Às vezes

Cátia Oliveira / Valter Rolo
Repertório de Liliana Martins 

Caminhamos sobre o fogo apagado
Cinza e pó, eu e tu lado a lado
E sem querer, abro a janela
Só p’ra te ver

A guitarra que tocas ao fundo
No meu sonho deu a volta ao mundo
Sem pensar, abro-te a porta
E deixo-te entrar

De que vale que às vezes me digas
Que és só meu na noite em que me abrigas
Sempre voltas a deixar-me cair no chão

Conversamos sobre o nosso passado
Sei que somos mais um caso arrumado
Sem rancor, damos as mãos
E seguimos pelo corredor

Tanto faz que às vezes me digas
Que não queres e sem querer me fustigas
Sempre voltas a colher o meu coração

Alice no país dos matraquilhos

Letra e música de Sérgio Godinho
Repertório de Cristina Branco

Mãe fora, em que avenida
Olhos que a perseguem pagam, comem
Pai dentro, lambendo a ferida
Com que o desemprego marca um homem;
E o irmão na caserna 
Puxando às armas brilhos
E Alice no café
Habitante do país dos matraquilhos

Na classe dos repetentes
Hoje vai haver mais uma falta
Alice cerra os dentes 
Vendo a bola que no ar ressalta
Quer lá saber do exame
Quer lá saber da escola
Aguenta no arame
Matraquilho nunca cai ao ir à bola

Alice no país dos matraquilhos
É mais do que no bairro onde vive
Tem-te, não cais

Há também Leonor
Libertada da prisão há meses
Dizem que é por amor 
Que olha tanto por Alice, às vezes
Pousa-lhe a mão na cara
Protege-a de sarilhos
Alice nem repara
Viajou para o país dos matraquilhos

E o irmão na caserna
Cambaleia entre a cerveja e a passa
Tem o sargento à perna
O tal que compara a guerra à caça
Faz tempo que descobre 
Que é um matraquilho mais
Soldadinho de cobre
Matraquilho no país dos generais

Quando se cai na lama 
Ninguém pára pra nos levantar
Por Alice, o pai reclama
A tua mãe não veio p’ra jantar
E os insultos noite fora
Desfia-os em chorrilhos
Alice nunca chora
Adormece no país dos matraquilhos

E a mãe no Bar do amor 
Passa as horas na conversa mole
Espera o seu protetor
Que o seu corpo a ele enfim se cole
Não é que não recorde 
Os que deixou em casa
Mas eis que chega o Ford 
E dentro vem o seu pavão de anel na asa

Entra então no café 
Um rapaz de capacete em punho
Fica-se ali de pé
Escreve num papel um gatafunho
E a Alice vê surpresa
Frases que são rastilhos
Como vai sua alteza
Rainha do país dos matraquilhos

E tu ainda és o rei
Será que vieste em meu auxílio
A bem dizer, já não sei
Há tantos anos que ando no exílio
Vamos a um desafio, atira tu primeiro
A vida está por um fio 
Para quem é deste bairro prisioneiro

O café que ali houve 
É uma loja com ares de modernice
E nunca ninguém mais soube
A não ser a Leonor da Alice
Aqui vai, Leonor
A foto dos meus dois filhos
Se reparares melhor
Têm pinta assim, sei lá, de matraquilhos

As palavras que me dizes

Fernando Gomes dos Santos / Alfredo Duarte *menor-versículo*
Repertório de Liliana Martins 

As palavras que me dizes / dia a dia 
São no meu corpo um cinzel / que tudo corta
Suavizando as cicatrizes / por magia
Que há muito trago na pele / quase morta

São palavras tão serenas / demoradas
Que me amainam temporais / plenos de gritos
Esqueço nelas minhas penas / derramadas
Meus pecados capitais / mais que infinitos

São palavras que alimentam / de carinho
A minh’alma endurecida / em desatino
Tão ardentes que me inventam / no caminho
Sede p’ra beber a vida / e ter destino

São palavras indecentes / que me atiras
Que devolvo sem pudor / num louco arpejo
Entre carícias ardentes / tu deliras
No meu ventre feito amor / nasce desejo

Neste meu peito onde cravas / quais raízes
Carícias firmes e ternas / com fervor
Guardo todas as palavras / que me dizes 
Como dádivas eternas / de um amor

Fado dançado

Letra e música de Miguel Araújo Jorge
Repertório de Ana Moura 

Rodo a saia sempre que bem me apetece
Viro o disco se o antigo me aborrece
Bato c’o tamanco, mão na anca, e mexe
E diz que o fado não se dança, até parece

Saio desta roda se bem me apetece
Diz que o vira não mexe, ainda se aborrece
Manca que manca, mão na anca e mexe
Ai não que não dança, até parece

E se alguma lágrima me aparece
O tamanco manda, a cabeça obedece
São dois para lá para cá outro tanto
A ver se o pranto não estanca, até parece

Sempre que o meu fado nesse teu tropece
Desenrolo a teia que o destino tece
Viro a minha vida toda do avesso
A ver se o fado não se dança, até parece

A lua foi embora 
Olha a aurora a despontar
Se o fado se canta e chora 
Também se pode dançar

E se alguma voz se insurge na quermesse
Fado assim não sei o que é que me parece
Paro logo e digo alto e pára o baile
Até o xaile eu viro se me apetece

Sai da roda e roda a saia, sobe e desce
Vira o disco e diz que vira assim não mexe
Roda o xaile e baila enquanto o baile deixa
E vê se o fado não mexe, ai não não mexe

A culpa foi embora 
Saudade bem pode esperar
Se o fado se canta e chora 
Também se pode dançar

Ninguém nos faz nautragar

Paulo Espírito Santo / Valter Rolo
Repertório de Liliana Martins c/ Vânia Duarte 

Só quem navega com esperança 
Vence a borrasca do mar
Não há tormenta sem bonança
Ninguém nos faz naufragar
Temos de dar a meia volta
Pró nosso rumo mudar
Se dermos uma volta inteira
Vamos pró mesmo lugar 

Vamos esquecer Alcácer-Quibir
E acreditar que o bom está para vir
Vençamos o temor ao velho Adamastor
Que mais não faz do que iludir

Dom Sebastião não vai regressar
Toda a bruma em nós se vai dissipar
Que venha quem vier e diga o que quiser
Não nos tente é enganar 

Já vencemos pestes, e guerras brutais
Os Napoleões e outros Cabrais
Se mais desses houver, cá estamos para ver
Vitórias nunca são demai

Imortal nação que o mar conquistou
Povo que a lutar jamais se negou
É hora de avançar, o que há a recear?
Nem a fistória nos vergou…

Se não há mal que sempre dure
Não penses em desistir
Que o temporal não nos perturbe
Pois a bonança há-de vir


Por que é que pensas pequenino
Nação valente, imortal?
Vamos mudar nosso destino 
Vamos cumprir Portugal

A saudade e ela

Carlos Conde / António Barbeirinho *fado porto*
Repertório de Raúl Pereira 

Ando cansado, ando farto
Da saudade que me abrasa
E me impõe duro castigo
Hoje fechei-a no quarto
Sai cedinho de casa
E trouxe a chave comigo

Deixei-a junto ao retrato
Da mulher que eu adorei 
Como se adora uma estrela
Sai, não fiz desacato
Cheguei à rua, chorei 
E voltei p'ra junto dela

Não sei como esta loucura
Da saudade, minha eleita 
Sendo enorme cabe inteira
Numa pequena moldura
Com um retrato, que enfeita 
A mesa de cabeceira

P'la saudade amarga e doce
P'la mulher do meu sentir 
Ou por ambas, par a par
A minha porta fechou-se
Nem uma pode sair 
Nem a outra pode entrar

Onde é que tu moras

Joaquim Pessoa / Paulo de Carvalho
Repertório de Carlos do Carmo 

Meu amor dormindo
Meu sonho acordado
Teu ventre parindo 
Um cravo encarnado
Onde é que tu moras
Meu lençol de espanto
Por quem é que choras 
Quando eu te canto

Aqui... 
À procura de ti nesta canção
Vou dando tudo em troca desse não
Que fez do meu poema a solidão
Aqui... 
Tão só como a certeza em que t’espero
Dentro de mim renasce o desespero
Por tudo o que eu não amo
O que eu não quero

Aqui... 
Entre rosas de raiva e de tormento
Trago anéis de silêncio e sofrimento
Conto as forcas de sangue que há no vento
Aqui... 
Tenho a fúria nos dedos desenhada
Farei do nosso amor a barricada
Perdendo quase tudo quase nada

Meu amor dormindo
Meu sonho acordado
Teu ventre parindo 
Um cravo encarnado
Onde é que tu moras
Meu lençol de espanto
Por quem é que choras 
Quando eu te canto:
Meu azul doendo
Meu barco parado
Pássaro morrendo 
Mas sem ter voado

Não quero nem saber

Sara Tavares / Kalaf Epalanga
Repertório de Ana Moura 

Dizem que o amor se revela já no fim
E até queimar essa vela estou aqui p’ra ti
Não levo nenhum livro
Nem os retratos que tiramos
Não quero esse cheiro
Nem um centavo teu

Agora eu só quero a tua melhor mentira
Aquela capaz de levar nações à guerra

Há muito que esse amor saiu p’ra o mar
Cigarro aceso na vela e nunca mais voltou
Então se não levo nada
Não quero nem saber
Se tu foste feliz
Ou se te fiz sofrer