Encontradas, na íntegra, nos arquivos de Francisco Mendes
foi o auto encenado por José Manuel Osório em 1999
sendo representado na mesma Adega Machado
onde fora estreado, na Adega Mesquita, A Severa, Café Luso
Clube de Fado, O Faia, O Timpanas, Restaurante Senhor Vinho
Sociedade A Voz do Operário e Taverna do Embuçado.
No ano seguinte, subiu à cena no Grande Auditório
do Centro Cultural de Belém.
Foram intérpretes:
Alice Pimenta, Maria Amélia Proença, Julieta Estrela, António Rocha
Daniel Gouveia, Filipe Duarte e Hélder Moutinho
com acompanhamento de Carlos Fontes e João Chitas (guitarras)
Luís Costa (viola) e Pedro Morato (viola-baixo).
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Eis as letras, na sequência com que foram cantadas em 1999 e 2000
QUEM É O CHICO DO CACHENÉ
O "Chico do Cachené"
Tem sempre um grãozinho n’asa
É o Faia mais fadista
Que "habita" na minha casa
Com ele nunca houve tricas
Nem intrigas, nem sarilhos
Gostam dele, e os meus dois filhos
Tanto o Licas como o Tricas
Dizem que amou certa Micas
Que poucos sabem quem é
E que ela passou o pé
Deixando quase no esquife
Num quarto do "Bairro Bife"
O "Chico do Cachené"
Sempre mãos nas algibeiras
Sorriso sempre na "lata"
Na boca sempre a beata
P'ra lhe dar "tic" às maneiras
Atira-se às cantadeiras
E já marcou entrevista
A certa mulher bairrista
Que a altas horas lá cai
Quem for com ele mal não vai
É o Faia mais Fadista
Dizem que aquele chapéu
Que o cachené e a tralha
E que também a medalha
Foi a Micas que lhe deu
Dês' que ela desapareceu
P'ra se atolar mais na vasa
No peito dele, uma brasa
Abrasa-lhe o coração
Pobre Faia. Desde então
Tem sempre um grãozinho n’asa
Outro dia, um badameco
Armou por lá uma cena
Lá porque a sua pequena
Estava a olhar p'ra o boneco"
Ele olhou o "Papo Seco"
E nisto, o "pipi" foi d'asa
Com ele ninguém faz vasa
E ainda mais o admiro
Porque é o tipo mais "giro"
Que "habita" na minha casa
O CHICO DO CACHENÉ
Certa vez, foi à noitinha
O Chico do Cachené
Chamou-me e disse: «Farinha
Vou contar-te a vida minha
Para saberes como é
Bem criado e mal fadado
Os meus pais tinham de seu
Por eles era adorado
Instruído e educado
Cheguei a andar no liceu
Ao estudo tomei horror
Era p’ra mim um suplício
Deixei aula e professor
Fui p’ra aprendiz de impressor
Para uma casa do ofício
Eu era menino e moço
Simples como uma donzela
’Té que um dia – que alvoroço
Fui à Travessa do Poço
Vi a Micas, gostei dela
A casa não voltei mais
Meus pais tiveram desgosto
Calcula: deixei meus pais
Preso nos olhos fatais
Que a Micas tinha no rosto
Com ela aprendi o Fado
O Fado a que te dedicas
Mas sempre, sempre empregado
Que, p’ra mim, era um pecado
Viver à custa da Micas
Vivi assim alguns anos
Quatro vezes lhe pus casa
Mas o seus olhos tiranos
Vadios como dois ciganos
Fugiam, batiam asa
Muita vez a fui buscar
Às ruas do outro «fado»
Um dia, p’ra não voltar
Fugiu... É que o seu olhar
Tinha que ser desgraçado
Hoje não tenho um afago
Um carinho, uma afeição
Sou um esquecido, mal pago
É no vinho que eu apago
O fogo desta paixão
Depois de contar-me a vida
O Chico pôs-se de pé
Pediu mais uma bebida
E uma lágrima atrevida
Caiu-lhe no cachené
A MICAS ERA UMA JÓIA
Todos cantam a odisseia
Do Chico, com simpatia
Mas ninguém diz que, ao velhaco
Quando estava na cadeia
Era a Micas quem lá ia
levar onças de tabaco
Não vivia à custa dela
Não fazia dela escrava
Louvo-lhe esses sentimentos
Mas muita, muita farpela
Era a Micas que a comprava
Numa loja, a pagamentos
A Micas era uma joia
Leviana, sim, talvez
No fundo, uma desgraçada
Certa vez, numa ramboia
Por nada que ela lhe fez
Ele moeu-a à pancada
Resultou, dessa tareia
Da forma de a agredir
O ser preso... e até se diz:
Só esteve um mês na cadeia
Porque a Micas foi pedir
por ele, ao Doutor Juiz
Também se deu um sarilho
Muito grande, entre ela e ele:
A mãe dela mo contou
A Micas tivera um filho
Um filhinho que era dele
E que ele não perfilhou
Não vim para a defender
Nem levantar-lhe degrau
No trono das desgraçadas
Mas costuma-se dizer
Que quando cachorro é mau
Todos lhe atiram pedradas
BÊBADO, BATOTEIRO E DESORDEIRO
Ele ganhava um quartinho
Era sempre o que ganhava
Mas gastava tudo em vinho!
E às vezes não lhe chegava
Conheci-o, meus senhores
De "setenta", de "ginjeira"
Numa banca pataqueira
Ali p'ra os Restauradores
Como tod'os jogadores
Andava sempre a caminho
Da tavolagem, pró "pinho"
Sempre a pedir emprestado
Mas não era precisado
Ele ganhava um quartinho
Entrou na Dança da Bica
Lembro-me, era eu criança
Fez com que acabasse a dança
E foi parar à Botica
Uma outra vez, em Benfica
Em que o Brito improvisava
Ameaçou quem lá estava
E desafiou uns poucos
Por fim, apanhou dois socos
Era sempre o que ganhava
A Micas gostava dele
Chamava-lhe o "seu menino"
Sei que lhe deu um varino
Com uma gola de pele
Deu-lhe um relógio, um anel
'Té o próprio "pianinho"
Em que tocava o fadinho
Ela lho dera também
O Chico ganhava bem
Mas gastava tudo em vinho
O "Chico do Cachené"
É tatuado no peito
Prestou-se a isso o sujeito
Quando esteve em S. José
Se isto é verdade, ou não é
Não sei: era o que constava
A "massa" que lhe emprestava
O Samuel agiota
Era toda prá batota
E às vezes, não lhe chegava
AS MÁS COMPANHIAS
O Chico fez tropelias
E deu aborrecimentos
Só devido às companhias
E não aos seus sentimentos
Cantava o Fado, era faia
Bebia, jogava à chapa
Mas sempre vestia capa
Pelo círio da Atalaia
A Micas era da laia
Das que fazem judiarias
Duma vez andou dez dias
Afastada do cortiço
Como não gostava disso
O Chico fez tropelias
Certa vez que o Chico foi
Às toirinhas em Palmela
Era ouvir o grito dela
O meu Chico hoje é um boi
Sou mulher, Deus me perdoe
Que este e outros argumentos
Venham a ser elementos
P’ra quem o Chico processa
A Micas era má peça
E deu aborrecimentos
Numa certa terça-feira
Foram ambos para a esquadra
Porque na Feira da Ladra
Ela armou em desordeira
Fora que a Júlia Cesteira
Adela nas Olarias
E dava ali os «bons-dias»
Pisou a saia da Micas
O Chico meteu-se em tricas
Só devido às companhias
Outra vez, p’lo Carnaval
Foram ao baile à Trindade
Pois diga-se à puridade
Que ambos não dançavam mal
Um guarda municipal
Disse dois atrevimentos
O Chico deu-lhe dois «tentos»
E tudo isto presume
Que levou tudo ao ciúme
E não aos seus sentimentos
BOÉMIO, VALENTE E ARTISTA
Vingava a honra ofendida
Tinha uma alma altruísta
Antes do Fado ser Arte
Já a Chico era um Artista
Certo "Amigo de Peniche”
Que ele julgava uma jóia
Viu-o ele de tipóia
Com a Micas, em Carriche
Viu-os, aguentou-se fixe
Mas não gostou da partida
Depois, 'spancou a atrevida
E o amigo de má-fé
Era assim o «Cachené»
Vingava a honra ofendida
Teve amigos verdadeiros
Escritores e doutores
Tu cá, tu lá, com atores
Tu lá, tu cá, com toureiros
Deu-se até com Conselheiros
E com muito Jornalista
Foi o melhor "Cancanista"
Do Baile dos Quintalinhos
E, entre vários pergaminhos
Tinha uma alma altruísta
Em noites de S. João
Passava noites inteiras
Dançando valsas rasteiras
Mazurcas, Polca a Tacão
Palhinhas e jaquetão
Calça branca, ou de zuarte
Nas feiras, por toda a parte
Com titulares, com ciganos
Passou-se isto há trinta anos
Antes do Fado ser Arte
Jogava o Pau e à Espada / Em qualquer jogo, era rijo
Uma tarde, no Montijo / Varreu a Vila à paulada
Em muita espera e toirada / Deixou a perder de vista
Muito forcado burlista / E, nos sectores da "Canção"
'Inda não davam cartão
Já o Chico era um Artista
SENTENÇA
O Chico do Cachené
Já todos sabem quem é
É um boneco inocente
Sem gestos, sem atitudes
Sem defeitos, sem virtudes
Um boneco, simplesmente
Concebido e modelado
P’la nossa imaginação
Com barro de fantasia
É um sopro do passado
Um pouco de tradição
De sonho e de poesia
Criámo-lo à nossa imagem
Com mais ou menos verdade
Somos os seus criadores
Rendemos-lhe vassalagem
Porque fala de saudade
E até dos nossos amores
Pretendemo-lo julgar
Vimos que ele era, porém
Filho do meio ambiente
E que era um caso vulgar
Era um tudo de ninguém
Um nada de toda a gente
Ninguém com certeza ignora
Que estivemos evocando
A tradição, o passado
Bendita esta «Boa-Hora»
Onde estivemos brincando
Com as guitarras e o Fado
Não se provou a má fé
Nos pecados do arguido
Que as paixões não nos iludam
O Chico do Cachené
Está, portanto, absolvido
«Leis do Fado não se mudam»
Linhares Barbosa ainda escreveu mais uma letra
sobre o «Chico do Cachené» para o cartaz que anunciava
a representação de 1948 no Café Luso, intitulada
"Alguns Comentários" onde fazia a apresentação do elenco
e onde se vê que alguns dos fadistas e instrumentistas
da primeira representação foram substituídos:
LEIS DO FADO NÃO SE MUDAM
(Bocage)
O Chico, mais uma vez
Foi preso e vai ser julgado
«Leis do Fado não se mudam»
Reza um antigo ditado
Cumprindo das leis o uso
O Chico vai a Juízo
Porque o juízo é preciso
E o Chico ao juízo é escuso
Vai ser julgado no «Luso»
Lá para o fim deste mês
Será punido?... Talvez!
Esperemos que a Justiça fale
Enfim, vai a tribunal
O Chico, mais uma vez
Já anda metendo cunhas
Para não ser condenado
Mas não leva um advogado
Um daqueles que tem «unhas»
Conhecem-se a testemunhas
É tudo gente do Fado
Vai a Lourdes do Machado
O Farinha, o Gabino
Pobre faia!... É o destino!
Foi preso e vai ser julgado
Vai o Jacinto Pereira
Que o deseja ver na montra
E também vai depor contra
A Natália, a galinheira
A Márcia, outra cantadeira
Vai pedir que ao Chico acudam
Mas estas coisas não grudam
Nem convencem os jurados
O Chico tem seus pecados.
«Leis do Fado não se mudam»
Sempre metido na «Adega
Do Machado», o infeliz
Comia e bebia a «giz»
E apanhava a sua cega
O Flávio, este não sossega
O Amando anda enervado
O Nery, vai estar ao lado
Do Chico do Cachené
O que nos salva é a Fé
Reza um antigo ditado