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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.260 LETRAS <> 3.120.500 VISITAS * MARÇO 2024 *

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À vela

Letra de Frederico de Brito
Desconheço se esta letra foi gravada.
Publico-a na esperança de obter informação credivel

Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

Foi numa canoa à vela
De passeio até ao mar
Que eu estive a falar com ela
À sombra daquela vela
Que o vento fazia andar

Mais tarde, a uma janela 
Pus-me com ela a falar
Tinha luz o quarto dela 
A luz fosca duma vela
Que eu gostava de apagar

Julgando-me a sós com ela 
Pedi-lhe um beijo, a brincar
Mas a mãe, estava de vela 
Mesmo detrás da janela
A ouvir-nos conversar

De combinação com ela 
Lá construímos um lar
Ela ofereceu uma vela 
À santinha da capela
Onde nos fomos casar

A nossa vida foi bela 
Mas eu andava a pensar
Se há uma zanga com ela 
Ai amor que vais à vela
E não tornas a voltar

Pois ontem, por culpa dela 
Recolhi mais tarde ao lar
E ela ficou à janela 
Até se gastar a vela
P’ra depois me arreliar

Hoje, p’ra me vingar dela 
Fui toda a roupa empenhar
Ou passa a noite à janela 
Ou tem que dormir à vela
Sem nada p’ra se tapar

De ti direi apenas

Fernando Campos de Castro / José Mário Branco *fado belo*
Repertório de Kátia Guerreiro

Este poema também foi gravado por Natércia Maria com o título
*De ti direi apenas* e com música de Maria José Gorjal

De ti direi apenas, que és espaço
Estrela em céu suspenso que me falta
Silêncio quase tenso, quase laço
Que aos poucos me sossega e sobressalta

Direi de ti apenas, que és loucura
Maré onde a minh'alma anda perdida
Num mar de solidão e de lonjura
Direi de ti apenas, minha vida

De ti direi apenas, que és um sonho
Um sonho que me alegra e que me agasta
Corpo que sabe a uva e a medronho
Que bebo e que respiro, e não me basta

Direi de ti apenas, que és verdade
Jardim onde inventei a minha flor
Num vendaval imenso de saudade
Direi de ti apenas, meu amor

Verso e reverso

Letra de Gabriel de Oliveira
Desconheço se esta letra foi gravada.
Publico-a na esperança de obter informação credivel

Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*


Um gajo p’ra ser fadista
Precisa golpe de vista
Gingar e ser tatuado
Provocar, ser desordeiro
Conhecer o Limoeiro
E ter amantes no fado

Deve beber e jogar
Ser leve para riscar 
E saber falar calão
Conviver com a canalha
Usar sempre uma navalha 
E saber ’stender a mão

Deve trajar a rigor
Cantar e fazer furor 
Nos tascos mal afamados
Conseguir dar os bons dias
Fazer tremer os rufias 
Nos bairros afadistados

Palavras d’alguns senhores
Armados em detractores 
Para o fado abandalhar
Quando um fadista, afinal
Tem altivez e moral 
Porque vive a trabalhar

Que importa a vida boémia
Se é no destino irmã gémea 
De quem tem bom coração
Cada um tem o seu fado
E um fadista bem formado 
Não é nenhum rufião

Sonho desfeito

Letra de António Vilar da Costa
Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informação credivel
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

Amaram-se com fervor
E uniram-se num sorriso
Num lar enternecedor
Qual paraíso de amor
Na Rua do Paraíso

Num bailarico na Estrela 
Por ciúme ou p’lo que fosse
Discutiam, ele e ela
E do lindo sonho dela 
A boa estrela apagou-se

Foi por ele abandonada 
Surgiram dificuldades
Mas sempre honesta e prendada
Trabalha a dias, coitada 
Lá para as Necessidades

Com fervor vai aguardando 
Seu amor não desespera
Todas as noites rezando
Num quartito miserando 
Lá na Travessa da Espera

Já fartinha de sofrer 
Pôs-se à esquina da Atalaia
De atalaia para o ver
Quando o foi surpreender 
Com outra de certa laia

Enlouqueceu, coitadinha 
E hoje ao vê-la, mete dó
Quando perdida à noitinha
Fala, canta e ri sozinha 
P’lo Beco do Fala-Só

Lá chegaremos

Letra de João da Mata
Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informação credivel

Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*


Noutros tempos, os fadistas
Que a si próprios se fizeram
Não se diziam artistas
E na verdade não o eram

Sabiam quanto valiam 
E cantavam por cantar
Do seu lugar não saíam 
Cada qual em seu lugar

Nos palanques dos cafés 
Ou nas tabernas bairristas
Só quem punha lá os pés 
Eram eles, os fadistas

Mas, hoje… o diabo a quatro 
Tudo está modificado
Fadistas, vão p’ra o teatro 
Artistas, vêm para o Fado

E vão criando raízes 
Estas loucas costumeiras
Cantandeiras são actrizes 
Actrizes são cantadeiras

Por este andar, não admira 
Que inda vejamos um dia
Alves da Cunha e Palmira 
Nas tascas da Mouraria

E, ver-se um grande letreiro 
P’las ruas da Capital
Hoje Alfredo Marceneiro 
No Teatro Nacional

Quando a Severa morreu

Letra de Manuel de Andrade
Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informação credivel
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Canção*

Hora morta, hora tardia
Nem um sussurro se ouvia
Nessas ruelas desertas
Debaixo dum candeeiro
Estava um ramo de loureiro
E duas portas abertas

E de dentro, vagamente
Sons de guitarra dormente 
Entre sussurros saíram
Estava a findar a rambóia
Quando trotando à tipóia 
Duas pilecas se ouviram

Saiu triste e desgostoso
O conde de Vimioso 
De dentro da carruagem
Calaram-se admirados
Os fadistas avinhados 
Da taberna do Friagem

Quando a guitarra abraçou
O conde triste tocou 
Um fado estranho e sombrio
E à luz fria da lanterna
No silêncio da taberna 
Longo soluçar se ouviu

Saiu o conde a chorar
Ouviu-se outra vez trotar 
A tipóia que o trouxera
Naquela noite diferente
Veio a saber toda a gente
Tinha morrido a Severa

Leva tudo o que é teu

Letra de Carlos Conde
Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informação credivel

Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*


Sei que tens outra mulher
Portanto leva o que é teu
Porque eu não quero viver
Dum amor que já morreu

Retratos, prendas, lembranças 
Guarda tudo muito bem
Até as minhas esperanças 
São tuas, leva-as também

E pronto. Podes sair 
E deixar-me abandonada
Mas não tornes a subir 
Os degraus da minha escada

Vai-te embora, se estás farto 
E até p'ra não me esqueceres
Leva a chave do meu quarto 
E volta quando quiseres

O teu olhar

Mote de Lopes Mendonça / Glosa de Carlos Harrington
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-tardicional*

Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informaçâo credivel


Quando a aranha pilha a mosca
A mata sem compaixão
Teus cabelos são a teia
A mosca o meu coração


Pode um só olhar prender 
Uma existência inteira
E sendo teu, feiticeira 
Jamais se pode esquecer
Que me importava viver 
Em uma cabana tosca
Onde a luz é tíbia e fosca 
Só pensando em teu olhar
Que amiúde vem lembrar
Quando a aranha pilha a mosca

És a aranha insidiosa 
Eu a mosca paciente
Que tu matas, lentamente 
Como o calor mata a rosa
Só uma mulher formosa 
Tem esse etéreo condão
Mas não sei qual a razão 
Por que roubas-me o repouso
Como esse insecto maldoso
A mata sem compaixão

Mas à flama desse olhar 
Que me importava morrer
Se há-de ser doce o sofrer 
E meigo o supliciar
Vem esta vida arrancar 
Ó minha louca sereia
Como a aranha a mosca enleia 
Vem-me também enlear
Que p’ra mais rigor lhe dar
Teus cabelos são a teia

Demais que me importa a morte 
Se a vida é um só momento
E ela põe fim ao tormento 
Nesse seu tão fatal corte
Se quer o meu fado, ou sorte 
Que eu pereça à tua mão
Fere, sem hesitação 
Tal golpe ninguém sustenha
Pois teu olhar é a aranha
A mosca o meu coração

Meu fado grito de vida

Letra de João Dias
Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informação credivel
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

Meu fado grito de vida
Tormenta em que me atormento
Minh’alma de mim perdida
Folha batida p’lo vento

Coração que ninguém vê 
Alma que ninguém procura
E canta não sei porquê 
Resto de sonho e loucura

Meu fado grito de vida 
Ó minha lira quebrada
Pedaço de cruz erguida 
Numa vida apedrejada

Meu fado, forma de reza 
Barca de leme partido
Vela que o vento despreza 
Num mar de tempo perdido

Se existir basta p’ra ser 
Porque hei-de ser redimida
Se não pedi p’ra nascer 
Meu fado, grito de vida

O que eu te dou

Mote de Eduardo Silvestre do Amaral / Glosa de António Amargo
Desconheço se esta letra foi gravada.
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Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

Dou-te o meu corpo e os meus beijos
Apenas por meia hora
Há mais quem tenha desejos
Entra, paga e vai-te embora


Pretendes o meu amor 
Que há tanto tempo já dei
Há tanto que até nem sei 
A quem o dei com fervor
Não posso nem por favor 
Entre náuseas e bocejos
Dar-te sequer os sobejos 
Do meu amor verdadeiro
Mas, como quero dinheiro
Dou-te o meu corpo e os meus beijos

É tudo o que posso dar 
Do meu cadáver exangue
Destes restos do meu sangue 
Que ando a mercadejar
Todo o que me quer comprar 
E os meus préstimos implora
Tem logo ali sem demora 
O que não nego a nenhum
Entrego-me a cada um
Apenas por meia hora

Achas pouco e eu, francamente 
Acho que é de mais, talvez
A quem se dá tanta vez 
Sem se dar inteiramente
Para uma ilusão dormente 
Em que não vibram harpejos
Nem há divinos lampejos 
A meia hora é bastante
Serve-te e passa adiante
Há mais quem tenha desejos

Há mais quem queira o que queres 
Há tanto freguês, há tanto
Que me compra o meu encanto 
Como compra outras mulheres
Mas, enfim, se me preferes 
Se me desejas agora
Eis a escrava que te explora 
E não quer saber quem sejas
Se é o meu corpo que desejas
Entra, paga e vai-te embora

Maria do Rosário

Letra de Artur Soares Pereira
Desconheço se esta letra foi gravada.
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Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

Maria do Rosário, uma enfermeira
Alegre, graciosa, mas modesta
Que a velar seus doentes sem canseira
Sentia o coração e a alma em festa

Jamais ela fugira ao sacrifício
Nunca ninguém lhe ouvira um só lamento
Escrava do seu dever, em benefício
Dos que lutam com a dor e o sofrimento

Cumprindo, dia a dia, o seu fadário
Com seu modo de ser todos encanta
E os doentes diziam que a Rosário
Não era uma enfermeira, era uma santa

Rosário tinha, há muito, um namorado
Que um dia, diz-lhe assim: é natural
Meu bem, quando vivermos lado a lado
Terás de abandonar o hospital

Ela ouviu tais palavras, vacilou
Pensa e responde assim, sem hesitar
Ou me queres enfermeira, como eu sou
Ou então é melhor tudo acabar

Hoje, encara de frente a realidade
Rosário, com seus modos sorridentes
Vive como que entregue a uma saudade
E ainda tem mais amor aos seus doentes

Uma proposta

Letra de Carlos Conde
Repertório de Joaquina Gomes
Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informação credivel


Acabo agora de ler
Uma adorável proposta
De um cavalheiro qualquer
Que tem pressa na resposta

Diz que se encontra aqui perto 
E firmemente disposto
A ter de saber ao certo 
Se gosto dele ou não gosto

Escusa de ter receio 
Pois basta que lhe prometa
Que pode ser lindo ao feio 
Corcunda, coxo ou maneta

Se tem massa e pouca vida 
O autor de tal proposta
Pode esperar-me à saída 
Que eu depois dou-lhe a resposta

Conselhos de minha mãe

Letra de João Linhares Barbosa
Esta será (talvez) a versão original da qual mais tarde nasceu 
o fado *DUAS LÁGRIMAS DE ORVALHO*.
Desconheço se esta letra foi gravada.
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Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

Minha mãe disse-me assim
Ao ver-me lágrimas tristes
Banhando-me o pobre rosto
Não posso, não sei dar fim
À tua grande desgraça
Ao teu amargo desgosto

Porque choras não me dizes
Nem é preciso dizê-lo 
Como sou mãe adivinho
Os amantes infelizes
Deveriam ter coragem 
Para mudar de caminho

P’lo amor damos a alma
Minha filha, damos tudo 
’Té cansarmos na jornada
Mas quando a gente se acalma
O que era amor é saudade 
E a vida já não é nada

Se estás a tempo, recua,
Amordaça o coração 
Mata o passado, sorri
Mas se não estás?... continua
Disse-me isto minha mãe 
Ao ver-me chorar por ti

Há festa na Mouraria

Mote de Gabriel de Oliveira / Isidoro de Oliveira
Desconheço se esta letra foi gravada.
Transcrevo-a na esperança de obter informação credivel
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Canção*

Há festa na Mouraria
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde
Até a Rosa Maria
Da Rua do Capelão
Parece que tem virtude


Parece que tem virtude 
Pela sua devoção
Este povo pecador
A Senhora da Saúde 
Em solene procissão
Vai passando no andor

Vai passando no andor 
Vai com ela uma criança
Uma criança que é Deus
Passa a mãe do Salvador 
Deixando um rasto de esp'rança
Uma promessa dos céus

Uma promessa dos céus 
Fica pairando no ar
Depois de passar Maria
Em honra da Mãe de Deus
Há guitarras a trinar 
Há festa na Mouraria

Fado ao mar

Letra e música de Maria de Lurdes Gandaio
Repertório da autora


Dentro de mim
Trago mil lendas de sereias
Dos pescadores, dos seus amores
Das marés cheias
Trago a tormenta
Trago a bonança, trago o luar
Que em mim se espelha
Quando eu canto um fado ao mar

Fado ao mar
Canto sempre um fado ao mar
P'ra que assim possa chorar
As mágoas sem ninguém ver
Fado ao mar
Dedico este fado ao mar
P'ra minh´alma aliviar
E na areia adormecer

Se o mar me dá
A maresia que me acalma
Dá me também
Toda a tormenta que enche a alma
Lanço-lhe as redes
De sentimentos que guardo em mim
E a inspiração
Cresce na voz que canta assim

Noite sem dia

António Cálem / Jaime Santos *fado alfacinha*
Repertório de Maria Valejo


Desespero duma noite
Duma noite mais que um dia
Quem me dera, meu amor
Que a noite fosse poesia

Que florisse à tona de água 
Neste lago em que te vi
Que voltasse a esta água 
A pureza que eu perdi

Que o luar não fosse sombra 
Mas só a sombra luar
Que o sonho fosse penumbra 
Penumbra do meu sonhar

Desespero duma noite 
Em que te vi sem te ver
Olho inquieto o meu quarto 
De que vale amanhecer?

Construtor falhado

José Castro Carvalho / Georgino de Sousa
Repertorio de Zé Carvalho


Depois duma distinção
Num curso de construção
E o diploma tirado
Comprei pás e picaretas
Níveis, prumos e marretas
Fiquei na vida lançado

O meu primeiro trabalho
Foi a fachada dum talho 
Que só me deu arrelias
Parecia um monumento
Mas porque não pus cimento 
Caiu ao fim de três dias

A seguir fiz um jazigo
Eu não minto quando digo 
Tenho orgulho nessa obra
Hoje estou arrependido
De não o ter oferecido 
À santa da minha sogra

Vejam bem a minha sina
Fui fazer uma piscina 
Mas o azar foi tamanho
Na sua inauguração
Houve uma perfuração 
E já ninguém tomou banho

Mais tarde fui contratado
Para fazer um telhado 
E foi tão grande o relaxo
Usei só madeiras velhas
Quando puseram as telhas 
O telhado foi abaixo

Tenho desenhos em mão
Construir uma prisão 
Um trabalho de valor
Estou mesmo a calcular
Quem a vai inaugurar 
Deve ser o construtor

O meu viver

António Cálem / Francisco Viana *fado vianinha*
Repertório de João Braga

Viver só do coração
Quem dera que fora assim
Dizer ao mundo que não
E só a ti dizer sim

Ser o contrário da flor 
Que se abre a todo o vento
Ser um vestígio de cor 
Só para o teu pensamento

Ser apenas um segundo 
No dia que amanheceu
Ser de ti, não ser do mundo 
Não ser ninguém mas ser teu

Nada mais peço da vida
Que este já não ser em mim
Deixar a morte esquecida 
Já que tu foste o meu fim

Fado menor

António Cálem / Popular *fado menor*
Repertório de Teresa Tarouca


No meu peito vive um mundo
Contrário ao que me dizias
Dias negros como as noites
Noites brancas como os dias

Dias negros de saudade 
Saudade de outros dias
Como tudo é tão diferente 
Daquilo que me dizias

Noites brancas em que ouço 
A voz cansada do mar
Guitarra que acompanha 
O meu destino a cantar

Prometeste-me a ventura 
Sorrisos e alegrias
Mas só as noites são brancas 
E são mais negros os dias

Sete luas

Alberto Franco / Carlos Neves *fado tamanquinhas*
Repertório de Ana Pacheco

Nasci em cama de cardos
Vivo às avessas da lei
Carrego dons que são fardos
Num tempo de dias pardos
E conventos para el-rei

Para quem ousa pensar 
Há muros sempre de pé
Para quem se atreve a sonhar 
Que um dia há de voar
Não faltam autos de fé

Chamaram-me Sete-luas 
Por meus saberes proibidos
Leio as vossas almas nuas 
Vejo as verdades mais cruas
E os segredos mais escondidos

Sete-luas, sete instantes 
Que no céu não se demoram
Sete corpos cintilantes 
Sete lençóis tão amantes
Dos Sete-sóis que em ti moram

Casa vazia

António Cálem / Carlos da Maia *quintilhas*
Repertório de João Braga


Ao fundo a minha lareira
Queima saudades de ti
Vazia a tua cadeira
Vazia até a fogueira
Onde a chama nem sorri

Um Cristo estende os braços 
Para quê ou para quem?
Na terra não há abraços 
Há só medos e cansaços
Solidão e mais ninguém

Cada hora é como um dia 
Cada minuto uma hora
E dizer que houve poesia 
E risos e alegria
Até ao romper da aurora

Hoje o meu lume é de frio 
A chama, escuridão
A casa é um lugar vazio 
Frio em tudo e ainda mais frio
Dentro do meu coração

Fado da Índia

Alberto Franco / Adriano Batista *fado macau*
Repertório de Carina Mateus


Para a Índia da riqueza
Da pimenta e da canela
Foi uma nau portuguesa
Meu marido embarcou nela

Livre como uma andorinha 
Nesta Lisboa fiquei
Não posso viver sozinha 
Por cá me arranjarei

A gente que me quer bem 
Está-me sempre a visitar
O que fazemos, porém 
Não vos posso aqui contar

Amigos tenho eu aos molhos 
Marido, deixa-te estar
Nunca despegues os olhos 
Das terras do Malabar

Até que num triste dia 
Meu marido regressou
Foi-se embora a alegria 
Já cá não está quem falou

Passei o tempo a rezar 
E guardei fidelidade
Mas se à Índia quiseres voltar 
Marido, estás à vontade

Nuvens negras

António Cálem / Franklin Godinho
Repertório de João Braga


Se os fados que outrora fiz
Voltassem a dar raiz
Nesta terra adormecida
Nascia de novo a flor
E traria então a cor
À negrura desta vida

Que bom seria voltar 
A sorrir e a cantar
Nesse bem que eu lembro ainda
Morrer inteiro p’ra o mundo
 E viver por um segundo
Todo o sol da tua vinda

Voltar de novo ao meio-dia 
Àquela nossa alegria
Perdida p’ra todo o sempre
Nuvem negra que hoje sou 
No rasto que o sol deixou
A caminho do poente

Velha Ribeira

Coelho Junior / Rezende Dias
Repertório de Adelina Silva


Velho de tantos janeiros
Foi berço de alguns heróis
Nasceu o Porto, primeiro
Nasceu a pátria depois

Suas pontes, velha Sé
Suas torres e pinhais
Viram nascer o Garrett
O Garrett e muitos mais

Velha Ribeira
Velho cais do Porto antigo
O rio mora contigo
Leva recados à Foz
Velha Ribeira
Teu arco não tem idade
Pois viu nascer a cidade
E viu-nos nascer a nós


Do velho cais ribeirinho
As naus, de velas abertas
Assim abriram caminho
Ao mundo das descobertas

Mais tarde triunfante
Desse ousado desafio
De barço erguido, o Infante
Aponta às águas do rio

Fado das caravelas

Arnaldo Leite / Campos Monteiro / Fernando Carvalho
Repertório de Anita Guerreiro

Neste meu Porto tripeiro
Berço de tantos heróis
Nasceu a pátria primeiro
Nasceu o mundo depois

Foi daqui, deste cantinho
Que o sonho das caravelas
Abriu no mar o caminho
À luz das nossas estrelas

Lá vão elas
Naus do Infante a navegar
Brilha a cruz das caravelas
Por sobre as águass do mar
Lá vão elas
Naus de Ceuta a navegar
E as estrelas
Brilham mais para as guiar


Desse balcão tão sombrio
Foi que o grande marinheiro
Vendo uma nesga de rio
Sonhou o mar todo inteiro

E a nossa barra d’escolhos
Ao ver passar o Infante
Encheu de mar os seus olhos
E pôs-lhe o mundo diante

Primavera perdida

António Cálem / Alfredo Correeiro
Repertório de José Pracana


Se eu pudesse ser quem era
Quando o sol da Primavera
Brilhava entre os pinhais
Passar a tudo indiferente
Ser igual a toda a gente
Ser mais um entre os demais

E não te ter conhecido
Nesse domingo perdido
Em que eu mesmo me perdi
Ter-te visto sem te olhar
Ter-te olhado sem ficar
Cego por te ver a ti

Hoje morri para sempre
Como o chão em que a semente
Não mais dará qualquer flor
Nem de lágrimas regada
A terra dará mais nada
Se não espinhos e dor

Sombras do passado

Alberto Franco / Armando machado *fadio licas*
Repertório de Carina Mateus


Estava escrito no livro do passado
Não se apaga sequer com um grande amor
Podem vir as estações, que o nosso fado
Se é negro não terá nunca outra cor

Minhas mãos eram limpas como as tuas
O tempo não tinha antes, só depois
Lisboa era nossa e as suas ruas
O mundo que bastava para nós dois

Mas há vozes antigas que murmuram
Há quem se encontre para se perder
As sombras do passado ao mundo juram
Que o sangue não permite o nosso querer

Quando te perdi, perdi o jeito
De amar, que é na vida o dom maior
Por mais que o coração bata no peito
A vida não é vida sem amor

Corvos

António Cálem / José Marques do Amaral
Repertório de João Braga


Passaram com o vento sul
Os corvos que o trouxeram
Só o mar ficou azul
Pois foi a cor que lhe deram

Mas tudo o resto mudou 
O céu cobriu-se de luto
E um vento seco secou 
Toda a flor e todo o fruto

Os pinhais choravam tanto 
Que até da praia se ouvia
E a rama verde no pranto 
Era negra ao meio-dia

Vi-os passar com o vento 
Os corvos em procissão
Em busca do meu tormento 
Na terra da promissão

Pranto de Leonor

Alberto Franco / Pedro Rodrigues *fado primavera*
Repertório de Raquel Maria


Ventos irados fustigam
Arrancam velas, castigam
A grande nau S. João
O mar engole indiferente
As finas joias do Oriente
Que enchiam o porão

Alguns enganam a morte
Mas para sua má-sorte 
A terra estranha vão ter
Escravos, marujos e nobres
Homens ricos, homens pobres 
São iguais no padecer

Com eles está Leonor
Que acompanha por amor 
O capitão, seu marido.
Da pobre gente vencida
Poucos verão a saída 
Daquele mundo perdido

A morte levou Leonor
No seu pranto sofredor 
Vive um fado português
E a sua triste história
É o reverso da glória 
Dum povo que ao mar se fez

Poentes feitos de nada

António Cálem / José Carlos Gomes *fado magala*
Repertório de João Braga

Poentes feitos de nada
Num sol ao longe a nascer
É o que resta duma estrada
Que me custa a percorrer

Todo o mundo é um deserto 
E a sede da tua imagem
Traz-me o teu corpo tão perto 
Que o perco por ser miragem

E mais do que isto a loucura 
De viver longe de ti
Saber que a tua lonjura 
Faz-me cantar, mesmo assim

Mas numa noite perdida 
Teremos a mesma sorte
Será minha a tua vida 
Será tua a minha morte

Converso à noite com o vento

Alberto Franco / Frederico de Brito *fado azenha*
Repertório de Raquel Maria

Converso à noite com o vento
Dou às sombras o lamento
Do amor que não tivemos
Nosso destino é igual
Ao de um barco no canal
Que não tem velas nem remos

Olhos de azul e lonjura
Fiz da lava sepultura 
Das ilusões que perdi
Sou anel deitado ao mar
Açor que não quis voar 
Para chegar junto a ti

Mistério que a ilha invade
Teia que prende a vontade 
E nos leva de vencida
Eu amei e fui amada
Por que me fiz condenada 
Ao desencanto da vida?

Quando a morte traiçoeira
Rondar pela minha beira 
E disparar o arpão
Hei de voltar numa onda
Dançar na festa redonda 
Da nossa libertação

Sobem pelo azul do ar

António Cálem / José Marques do Amaral
Repertório de João Braga


Sobem pelo azul do ar
Canções tristes como luas
É uma noite de luar
Com nuvens negras na rua

Há cinco sonhos abertos 
A sonhar cinco sentidos
Há mistérios descobertos 
Em cinco corpos vendidos

Num deles sonho depois 
O sonho de toda a gente
Sou eu e tu, somos dois 
Amor dum amor ausente

Sobem pelo azul do ar 
Canções tristes como luas
É uma noite de luar 
Com nuvens negras na rua

Inês à espera

Alberto Franco / Fernando Freitas *fado pena*
Repertório de Ana Pacheco

Dizem-me que é tarde e não te espere
Que nunca mais render-me amor virás
Pois o amor que a fria razão fere
É certo que com ferros morrerá

Não quis as leis austeras afrontar
Apenas o amor guiou meus passos
E se por Pedro à morte me entregar
Que a minha vida acabe nos seus braços

Como esquecer as brancas madrugadas
O seu encanto brando e amoroso
As horas por nós dois tão celebradas
Nas margens do Mondego rumoroso

Não sei, meu rei, se voltarás ou não
Nem quando a minha espera findará
Mas disse-me baixinho o coração
Que o nosso amor a morte vencerá

Sonho por sonhar

António Cálem / Popular c/arranjos de Jorge Fontes
Repertório de Ondina Sotto Mayor


Quem me dera a solidão
Ser eu sozinho a chorar
Sem te ter no coração
Sem te ver no meu olhar

Sem te ver no meu olhar 
Sem te ler no pensamento
Semente feita luar 
Levada a sabor do vento

Levada a sabor do vento 
Levada a sabor da vida
Quem dera que o pensamento 
Fosse a semente perdida

Fosse a semente perdida 
Que não voltasse a encontrar
Quem dera que a minha vida 
Fosse um sonho por sonhar

De manhã

Alberto Franco / Santos Moreira *fado moreninha”
Repertório de Carina Mateus


Manhã de Verão, domingo luminoso
Lisboa, sonolenta, ainda preguiça
Pelo bairro burguês silencioso
Passam damas beatas para a missa

Ela acordou há pouco ansiosa
Só de pensar no dia que aí vem
Estreará o vestido cor-de-rosa
Ou o azul que nela cai tão bem?

Um domingo no campo, que alegria
Ar livre e os encantos mais diversos
E para o piquenique a companhia
Dum certo moço triste que faz versos

Ela colheu um ramo de papoulas
Vermelhas, cor do poente que arde
Pô-lo no peito sem vaidades tolas
E foi a mais bonita dessa tarde

Serenata

António Cálem / Alfredo Duarte *fado bailarico*
Repertório de João Braga


A lua faz o cenário
Num palco que julgo ver
Telhados dum campanário
E ao fundo um rio a correr

Ondeiam gestos usados 
Nascidos só de fadiga
E há só murmúrios velados 
A sonhar uma cantiga

Pedaços de guitarradas 
Fazem vibrar as vidraças
Onde acordam estremunhadas 
Figuras gastas e baças

E uma que só retrata 
O sonho e o coração
Julga ouvir a serenata 
Que nunca mais lhe farão

Três nomes

Alberto Franco / Joaquim Campos *fado tango*
Repertório de Raquel Maria


As nossas vidas negaram
Cegaram os horizontes
Os sonhos amortalharam
E em choro transformaram
O canto alegre das fontes

Tanto ódio semeado
Com punhos de renda fina
Em quanto salão dourado
Do luxo mais requintado

Pairam aves de rapina
O amor não teve lugar
Foi das trevas a vitória
Um lenço branco a acenar
Um navio em alto mar
Ficaram da nossa história

Mas nas páginas dum livro
Persiste a recordação
Por muito amar estamos vivos
Três nomes do amor cativos
Mariana, Teresa e Simão

Sim ou não

António Cálem / José António Sabrosa *fado saudade das saudades*
Repertório de António de Noronha

Que triste é passar a vida
Entre um sim e entre um não
Viver da hora perdida
Do bater dum coração

Ficar à espera dum nada 
Dum silêncio que ainda dura
Ser-se noite em madrugada 
Ou manhã em noite escura

E o coração a bater 
Ora diz sim ou diz não
A vida que vai nascer 
Ou a morte e a solidão

Mas não me digas que não
Sem saber para onde vais
Diz-me que sim, coração 
Deixa o não para nunca mais

Dona Genciana

Alberto Franco / Pedro Rodrigues
Repertório de Ana Pacheco


Depois que o canhão soou
E Lisboa vitoriou
A República tão bela
Numa avenida catita
Uma crioula bonita
Passava o tempo à janela

Genciana tropical
Do Brasil p’ra Portugal
Com o seu nome de flor
Da janela em que reinava
A todos enamorava
Desde o operário ao doutor

Mas a janela ansiada
Um dia apareceu fechada
Genciana não estava lá
Dizem que fugiu do frio
Que voltou para o seu Rio
Por feitiço de Orixá

Há gente que nesta hora
Sente saudades e chora
Junto àquela persiana
Um velhote que a amou
Ainda há pouco me falou
Nos encantos de Genciana

Passam os dias, os anos

António Cálem / Joaquim Campos *fado Rosita*
Repertório de Miguel Sanches


Passam os dias, os anos
E és tu que hás-de ficar
A viver do desengano
De só te saber sonhar

É que eles passam sem fim 
E contigo permanecem
É que há mundos que esqueci 
Mas contigo não se esquecem

É que tu trazes aos dias 
O que aos dias me faltava
O riso, as alegrias 
Que o mundo já não me dava

Mas ninguém mais, somos nós 
A sulcar o mar profundo
É que o mundo somos nós 
E o resto nem sei se é mundo

Canção da costureirinha

Arnaldo Leite / Campos Monteiro / Fernando Carvalho
Repertório de Maria de Fátima Bravo

Esta vida minha toda amor e fé
Lembra a daquela andorinha
Que voa sempre à tardinha
Sobre os telhados da Sé

Corro o Porto a eito 
De ruas em flor
Xaile atado em cruz no peito
Porque o meu amor 
Vive satisfeito
No seu bendito calor

Ó linda costureirinha
Teus sonhos e teus segredos
São um novelo de linha
Entre os fusos dos teus dedos
E os teus olhos tão escravos
D'um trabalho sem igual
Tens o cordão d'alinhavos
E por anel um dedal


Sou a costureira
E à noite em casa
Trabalho de tal maneira
Que os meus olhos de canseira
Ardem mais do que uma brasa

Já não vejo a rua 
Vejo agulha e linha
Vai-se o sol, desmaia a lua
E tu ali sozinha 
Triste vida a tua
Ó linda costureirinha

Ó linda costureirinha
Teu andar tão leve, leve
Lembra o de uma princesinha
Sobre um caminho de neve
E o teu riso cristalino
Fonte d’ amor e beleza
É a letra do novo hino
Onde não reina a tristeza

Sonho desfeito

Lera e música de Frei Hermano da Câmara
Repertório do autor


Esta paixão 
Que nasceu na primavera
Já deixou de ser o que era
Meu coração
Ao ver-me assim satisfeito
Punha-se aos saltos no peito
Num turbilhão

E agora já nada resta
Que uma tristeza funesta
Pelo chão
Vejo a sombra da alegria
Na minh`alma morre o dia
Cai a noite e a escuridão

E quando canto 
Ao som triste da guitarra
Fico preso pela amarra 
Dum profundo sentimento
E canto tanto 
Que o meu coração amigo
Quer também cantar comigo 
E aumenta o meu sofrimento

Uma ilusão 
Que eu pensei que estava morta
Veio bater à minha porta
Por compaixão
Quis-se sentar a meu lado
Cantou comigo este fado
Com emoção

Mas finalmente ao saber
Que eu já não quero viver
Meu coração vai batendo devagar
E até que eu queira parar
Vou rezando esta oração

Quando esta dor 
Vir meus dias apagados
E estes meus olhos fechados
Braços em cruz sobre o peito
Ó meu amor
Nesse dia tão medonho
Pede a Deus um outro sonho
Porque este já está desfeito

Lisboa cidade sol

Arlindo de Carvalho / Eduardo Olímpio
Repertório de Lenita Gentil


Nos braços da madrugada
Lisboa vejo acordar
Seus olhos de água salgada
Saudades têm do mar

A voz fresca dum ardina
Ajuda o sol a nascer
E o bailar duma varina
Ao descer uma colina
Sabe a gosto de viver

Onde é que o sol 
Tem mais bela a claridade?
É em Lisboa, é em Lisboa
Onde é que a noite 
Canta a palavra saudade?
É em Lisboa, é em Lisboa
Onde é que o fado 
Tem mais alma e mais verdade?
É em Lisboa, é em Lisboa
Não há no mundo cidade
Como Lisboa, como Lisboa


Canoas dormem pousando
Os remos à beira cais
E há moços que andam pescando
Cachopas, nos arraiais

Lisboa, velha Lisboa
Ó musa d´inspiração
Do Cesário e do Pessoa
Em tuas asas já voa
O azul duma canção

Sonho perdido

António Cálem / Joaquim Campos *fado amora*
Repertório de João Braga

Noite branca de luar
Nesse teu corpo presente
Onde apenas sei sonhar
O sonho de toda a gente

O sonho de toda a gente 
Que paga para o sonhar
Um sonho que nem é sonho 
Que é apenas despertar

Se ao menos em ti quisesse 
Sonhar que o sonho era meu
Mas a vida em ti esquece 
O sonho que se perdeu

O sonho que jaz perdido 
No fim do teu coração
E que se abre num sorriso 
Quase a pedir-me perdão

Não te conheço sequer

António Cálem / Fernando Freitas *fado das sardinheiras*
Repertório de Joana Possollo Cruz


Não te conheço sequer
Nem sei que cantas para mim
Mas sei que te vi passar
À noite no meu jardim

E sei que tu me cantaste 
Um fado que eu já sentira
E sei que a letra era minha 
Num menor que nunca ouvira

Nem mesmo sei se era fado 
Se era o luar que descia
Mas vi-te de braço dado 
Com a noite que sorria

Não te conheço, bem sei 
Sonhei antes de te ver
Mas de tudo o que sonhei 
Ficou este amanhecer

Morrer por ti

José Pereira da Conceição / Popular “fado das horas
Repertório de Manuel Barbosa


Que importa o mundo saber
Que é por ti amor, que eu canto
Pois é fácil perceber
Porque é que te quero tanto

Que importa o mundo saber 
Que os versos que te dedico
Escrevo-os com tal prazer 
Que por ti, feliz eu fico

Que importa o mundo saber 
Que a gente pouco se rala
Se não sabem entender 
Que é de amor que o amor fala

Quero lá saber do mundo 
Se o mundo não quer saber
Que por este amor profundo 
Um dia eu hei-de morrer

Saudade espuma do mar

José Aucher / João Blak *fado menor do porto*
Repertório de Teresa Siqueira


Saudade, espuma do mar
E a onda baixou na areia
Para marcar o lugar
Onde esteve em maré cheia

Saudade, espuma perdida
Que o vento espalhou no ar
Foste por ele vencida
Cedeste-lhe o teu lugar

E se o tempon na verdade
A espuma do mar levou
Porque não leva a saudade
Que o teu amor me deixou

Para quê versos?

António Calém / Pedro Rodrigues *fado primavera*
Repertório de Zé Caravela

Para quê versos, meu amor?
Versos são aonde eu for
O teu nome e nada mais
Porquê dizer tudo ao vento
Mesmo que esse meu lamento
Seja o eco dos meus ais?

Para quê versos, meu amor?
Eu já cantei toda a dor
Já chorei e fiz chorar
Não sei mais o que te diga
Não sei trova mais antiga
Que ainda te saiba cantar

Para quê versos, meu amor?
Se tu és aquela flor
Que eu vi pela vez primeira?
Depois do tempo vivido
Foste esse lírio florido
Que eu sonhei a vida inteira

História do Chico do Cachené

Este magnífico trabalho foi-me cedido pelo mestre 
DANIEL GOUVEIA
- - - 
Em 1945, Linhares Barbosa escreveu um «auto poético fadista» 
intitulado: O Julgamento do Chico do Cachené. 

Tudo começou quando um grupo de amigos, dos quais faziam parte 
o artista plástico e boémio D. Tomás José de Melo (Tom) 
Linhares Barbosa, saiu da Adega Machado 
após um animado almoço. 

Um ferro-velho ambulante expunha num carrinho várias bugigangas
onde Tom divisou um boneco de madeira, nu com meio metro 
de altura. 
Comprou-o, sob as piadas dos amigos, e levou-o consigo. 

Dias depois apareceu no Machado com o boneco vestido à «faia» 
de jaqueta, calça de boca-de-sino, bota «afiambrada», chapéu à banda
cache-nez de seda ao pescoço. 

Armando Machado pô-lo numa peanha, em local bem visível da casa 
e mestre Linhares batizou-o de «Chico do Cachené».

Mais uns tempos passados e o mesmo grupo divertia-se em
fazer comentários ao «Chico».

Uns acusando-o de ser um estroina, bêbado, sem ocupação 
senão a de estar na sua peanha a ouvir fados
vivendo à custa de uma mulher (a Micas).

Outros defendendo-o, alegando que tinha sido 
um desgosto de amor ele nem era mau rapaz, e por aí fora.

Então, Linhares Barbosa propôs fazer-lhe um julgamento 
em forma para o que escreveria os depoimentos da acusação 
da defesa, a sentença tudo em letras de fado a fim de ser 
cantado ali mesmo. 

Estreou-se este auto poético fadista em 28 de Julho de 1945
às 15h00, na Adega Machado. 

Foram intervenientes:
Maria de Lurdes Machado, Fernando Farinha, Natália dos Anjos
Maria de Castro, Jacinto Pereira e Gabino Ferreira
Acompanhados, à guitarra e à viola por 
António Henriques e Flávio Teixeira. 
O próprio Linhares desempenhou o papel de Juiz

Em 25 de Maio de 1948 foi de novo levado à cena, no Café Luso.

Depois, caiu no esquecimento, as letras perderam-se
havendo apenas excertos publicados na Guitarra de Portugal
n.º 5, de 15 de Agosto e 1945.

Encontradas, na íntegra, nos arquivos de Francisco Mendes 
foi o auto encenado por José Manuel Osório em 1999
sendo representado na mesma Adega Machado 
onde fora estreado, na Adega Mesquita, A Severa, Café Luso 
Clube de Fado, O Faia, O Timpanas, Restaurante Senhor Vinho
Sociedade A Voz do Operário e Taverna do Embuçado. 

No ano seguinte, subiu à cena no Grande Auditório 
do Centro Cultural de Belém. 

Foram intérpretes: 
Alice Pimenta, Maria Amélia Proença, Julieta Estrela, António Rocha 
Daniel Gouveia, Filipe Duarte e Hélder Moutinho
com acompanhamento de Carlos Fontes e João Chitas (guitarras)
Luís Costa (viola) e Pedro Morato (viola-baixo).
- - - 
Eis as letras, na sequência com que foram cantadas em 1999 e 2000

QUEM É O CHICO DO CACHENÉ

O "Chico do Cachené"
Tem sempre um grãozinho n’asa
É o Faia mais fadista
Que "habita" na minha casa


Com ele nunca houve tricas 
Nem intrigas, nem sarilhos
Gostam dele, e os meus dois filhos 
Tanto o Licas como o Tricas
Dizem que amou certa Micas 
Que poucos sabem quem é 
E que ela passou o pé 
Deixando quase no esquife
Num quarto do "Bairro Bife"
O "Chico do Cachené"

Sempre mãos nas algibeiras 
Sorriso sempre na "lata"
Na boca sempre a beata 
P'ra lhe dar "tic" às maneiras
Atira-se às cantadeiras 
E já marcou entrevista
A certa mulher bairrista 
Que a altas horas lá cai
Quem for com ele mal não vai
É o Faia mais Fadista

Dizem que aquele chapéu 
Que o cachené e a tralha
E que também a medalha 
Foi a Micas que lhe deu
Dês' que ela desapareceu 
P'ra se atolar mais na vasa
No peito dele, uma brasa 
Abrasa-lhe o coração
Pobre Faia. Desde então
Tem sempre um grãozinho n’asa

Outro dia, um badameco 
Armou por lá uma cena
Lá porque a sua pequena 
Estava a olhar p'ra o boneco"
Ele olhou o "Papo Seco" 
E nisto, o "pipi" foi d'asa
Com ele ninguém faz vasa 
E ainda mais o admiro
Porque é o tipo mais "giro"
Que "habita" na minha casa

O CHICO DO CACHENÉ


Certa vez, foi à noitinha 
O Chico do Cachené
Chamou-me e disse: «Farinha
Vou contar-te a vida minha 
Para saberes como é

Bem criado e mal fadado 
Os meus pais tinham de seu
Por eles era adorado 
Instruído e educado 
Cheguei a andar no liceu

Ao estudo tomei horror 
Era p’ra mim um suplício
Deixei aula e professor
Fui p’ra aprendiz de impressor
Para uma casa do ofício

Eu era menino e moço 
Simples como uma donzela
’Té que um dia – que alvoroço 
Fui à Travessa do Poço
Vi a Micas, gostei dela

A casa não voltei mais 
Meus pais tiveram desgosto
Calcula: deixei meus pais 
Preso nos olhos fatais 
Que a Micas tinha no rosto

Com ela aprendi o Fado 
O Fado a que te dedicas
Mas sempre, sempre empregado
Que, p’ra mim, era um pecado
Viver à custa da Micas

Vivi assim alguns anos 
Quatro vezes lhe pus casa
Mas o seus olhos tiranos
Vadios como dois ciganos 
Fugiam, batiam asa

Muita vez a fui buscar 
Às ruas do outro «fado»
Um dia, p’ra não voltar
Fugiu... É que o seu olhar 
Tinha que ser desgraçado

Hoje não tenho um afago 
Um carinho, uma afeição
Sou um esquecido, mal pago
É no vinho que eu apago 
O fogo desta paixão

Depois de contar-me a vida 
O Chico pôs-se de pé
Pediu mais uma bebida
E uma lágrima atrevida 
Caiu-lhe no cachené

A MICAS ERA UMA JÓIA

Todos cantam a odisseia 
Do Chico, com simpatia
Mas ninguém diz que, ao velhaco
Quando estava na cadeia 
Era a Micas quem lá ia
levar onças de tabaco

Não vivia à custa dela 
Não fazia dela escrava
Louvo-lhe esses sentimentos
Mas muita, muita farpela 
Era a Micas que a comprava
Numa loja, a pagamentos

A Micas era uma joia 
Leviana, sim, talvez
No fundo, uma desgraçada
Certa vez, numa ramboia 
Por nada que ela lhe fez
Ele moeu-a à pancada

Resultou, dessa tareia 
Da forma de a agredir
O ser preso... e até se diz:
Só esteve um mês na cadeia 
Porque a Micas foi pedir
por ele, ao Doutor Juiz

Também se deu um sarilho
Muito grande, entre ela e ele:
A mãe dela mo contou 
A Micas tivera um filho 
Um filhinho que era dele
E que ele não perfilhou

Não vim para a defender 
Nem levantar-lhe degrau
No trono das desgraçadas
Mas costuma-se dizer 
Que quando cachorro é mau
Todos lhe atiram pedradas

BÊBADO, BATOTEIRO E DESORDEIRO


Ele ganhava um quartinho
Era sempre o que ganhava
Mas gastava tudo em vinho!
E às vezes não lhe chegava


Conheci-o, meus senhores 
De "setenta", de "ginjeira"
Numa banca pataqueira 
Ali p'ra os Restauradores
Como tod'os jogadores 
Andava sempre a caminho
Da tavolagem, pró "pinho" 
Sempre a pedir emprestado
Mas não era precisado
Ele ganhava um quartinho

Entrou na Dança da Bica 
Lembro-me, era eu criança
Fez com que acabasse a dança 
E foi parar à Botica
Uma outra vez, em Benfica 
Em que o Brito improvisava
Ameaçou quem lá estava 
E desafiou uns poucos
Por fim, apanhou dois socos
Era sempre o que ganhava

A Micas gostava dele 
Chamava-lhe o "seu menino"
Sei que lhe deu um varino 
Com uma gola de pele
Deu-lhe um relógio, um anel 
'Té o próprio "pianinho"
Em que tocava o fadinho 
Ela lho dera também
O Chico ganhava bem
Mas gastava tudo em vinho

O "Chico do Cachené" 
É tatuado no peito
Prestou-se a isso o sujeito 
Quando esteve em S. José
Se isto é verdade, ou não é 
Não sei: era o que constava
A "massa" que lhe emprestava 
O Samuel agiota
Era toda prá batota
E às vezes, não lhe chegava

AS MÁS COMPANHIAS


O Chico fez tropelias
E deu aborrecimentos
Só devido às companhias
E não aos seus sentimentos


Cantava o Fado, era faia 
Bebia, jogava à chapa
Mas sempre vestia capa 
Pelo círio da Atalaia
A Micas era da laia 
Das que fazem judiarias
Duma vez andou dez dias 
Afastada do cortiço
Como não gostava disso
O Chico fez tropelias

Certa vez que o Chico foi 
Às toirinhas em Palmela
Era ouvir o grito dela 
O meu Chico hoje é um boi
Sou mulher, Deus me perdoe 
Que este e outros argumentos
Venham a ser elementos 
P’ra quem o Chico processa
A Micas era má peça
E deu aborrecimentos

Numa certa terça-feira 
Foram ambos para a esquadra
Porque na Feira da Ladra 
Ela armou em desordeira
Fora que a Júlia Cesteira 
Adela nas Olarias
E dava ali os «bons-dias» 
Pisou a saia da Micas
O Chico meteu-se em tricas
Só devido às companhias

Outra vez, p’lo Carnaval 
Foram ao baile à Trindade
Pois diga-se à puridade
Que ambos não dançavam mal
Um guarda municipal 
Disse dois atrevimentos
O Chico deu-lhe dois «tentos» 
E tudo isto presume
Que levou tudo ao ciúme
E não aos seus sentimentos

BOÉMIO, VALENTE E ARTISTA

Vingava a honra ofendida
Tinha uma alma altruísta
Antes do Fado ser Arte
Já a Chico era um Artista


Certo "Amigo de Peniche” 
Que ele julgava uma jóia
Viu-o ele de tipóia 
Com a Micas, em Carriche
Viu-os, aguentou-se fixe 
Mas não gostou da partida
Depois, 'spancou a atrevida 
E o amigo de má-fé
Era assim o «Cachené»
Vingava a honra ofendida

Teve amigos verdadeiros 
Escritores e doutores
Tu cá, tu lá, com atores 
Tu lá, tu cá, com toureiros
Deu-se até com Conselheiros 
E com muito Jornalista
Foi o melhor "Cancanista" 
Do Baile dos Quintalinhos
E, entre vários pergaminhos
Tinha uma alma altruísta

Em noites de S. João 
Passava noites inteiras
Dançando valsas rasteiras 
Mazurcas, Polca a Tacão
Palhinhas e jaquetão 
Calça branca, ou de zuarte
Nas feiras, por toda a parte 
Com titulares, com ciganos
Passou-se isto há trinta anos
Antes do Fado ser Arte

Jogava o Pau e à Espada / Em qualquer jogo, era rijo
Uma tarde, no Montijo / Varreu a Vila à paulada
Em muita espera e toirada / Deixou a perder de vista
Muito forcado burlista / E, nos sectores da "Canção"
'Inda não davam cartão
Já o Chico era um Artista

SENTENÇA

O Chico do Cachené 
Já todos sabem quem é
É um boneco inocente
Sem gestos, sem atitudes 
Sem defeitos, sem virtudes
Um boneco, simplesmente

Concebido e modelado 
P’la nossa imaginação
Com barro de fantasia
É um sopro do passado 
Um pouco de tradição
De sonho e de poesia

Criámo-lo à nossa imagem 
Com mais ou menos verdade
Somos os seus criadores
Rendemos-lhe vassalagem 
Porque fala de saudade
E até dos nossos amores

Pretendemo-lo julgar
Vimos que ele era, porém
Filho do meio ambiente
E que era um caso vulgar
Era um tudo de ninguém
Um nada de toda a gente

Ninguém com certeza ignora 
Que estivemos evocando
A tradição, o passado
Bendita esta «Boa-Hora» 
Onde estivemos brincando
Com as guitarras e o Fado

Não se provou a má fé 
Nos pecados do arguido
Que as paixões não nos iludam
O Chico do Cachené 
Está, portanto, absolvido
«Leis do Fado não se mudam»

Linhares Barbosa ainda escreveu mais uma letra 
sobre o «Chico do Cachené» para o cartaz que anunciava 
a representação de 1948 no Café Luso, intitulada 
"Alguns Comentários" onde fazia a apresentação do elenco 
e onde se vê que alguns dos fadistas e instrumentistas 
da primeira representação foram substituídos:

LEIS DO FADO NÃO SE MUDAM
(Bocage)

O Chico, mais uma vez
Foi preso e vai ser julgado
«Leis do Fado não se mudam»
Reza um antigo ditado


Cumprindo das leis o uso 
O Chico vai a Juízo
Porque o juízo é preciso 
E o Chico ao juízo é escuso
Vai ser julgado no «Luso» 
Lá para o fim deste mês
Será punido?... Talvez! 
Esperemos que a Justiça fale
Enfim, vai a tribunal
O Chico, mais uma vez

Já anda metendo cunhas 
Para não ser condenado
Mas não leva um advogado 
Um daqueles que tem «unhas»
Conhecem-se a testemunhas 
É tudo gente do Fado
Vai a Lourdes do Machado 
O Farinha, o Gabino
Pobre faia!... É o destino!
Foi preso e vai ser julgado

Vai o Jacinto Pereira 
Que o deseja ver na montra
E também vai depor contra 
A Natália, a galinheira
A Márcia, outra cantadeira 
Vai pedir que ao Chico acudam
Mas estas coisas não grudam 
Nem convencem os jurados
O Chico tem seus pecados.
«Leis do Fado não se mudam»

Sempre metido na «Adega 
Do Machado», o infeliz
Comia e bebia a «giz» 
E apanhava a sua cega
O Flávio, este não sossega 
O Amando anda enervado
O Nery, vai estar ao lado 
Do Chico do Cachené
O que nos salva é a Fé
Reza um antigo ditado