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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.260 LETRAS <> 3.120.500 VISITAS * MARÇO 2024 *

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Já que sais

José Gonçalez / Armando Machado *fado santa luzia*
Repertório de António Pinto Basto

Agora que a minha rua
Vai deixar de ser a tua
Porque te queres ir embora
Diz àquele sonho antigo
Que parta também contigo
Que saia p’la porta fora

Podes levar o que é teu
Se quiseres leva o que é meu
Isso a mim já nada interessa
Sai quando eu cá não estiver
Porque eu não te quero ver
Já que sais, parte depressa

Não deixes fotografias
Testemunhas de alegrias
Felicidades doutras luas
Eu não quero mais andar
Por aí, a encalhar
Em tantas lembranças tuas

Não me fales nunca mais
Nem me digas p’ra onde vais
Se finjo que nada importa
Tenho medo que o coração
Não resista à tentação
E te vá bater à porta

A Beatriz da Ribeira

António Vasconcelos / Eugénio Pepe
Repertório de Anabela


A Beatriz da Ribeira
Era a vendedeira com maior cartaz
Num corpo esguio, travessa
Virava a cabeça a qualquer rapaz

Mal rompia a madrugada
A sua chegada era um festival
Ela era a luz da Ribeira
Era a mais brejeira que o sol e o sal

Ó Ribeira, ó Ribeira
Levanta a voz e apregoa
No mercado da Ribeira
Estão as mulheres 
Mais bonitas de Lisboa

Ó Ribeira, ó Ribeira
Grita alto o teu pregão
Venham todos à Ribeira
Ver as mulheres que cá estão
Que belas são

Bravia e cheia de brio
O fado vadio era todo seu
Na Grande Noite do Fado
Cantou e deu brado lá no Coliseu

Deixou de ser vendedeira
Hoje é cantadeira, percorre o país
E a malta diz na Ribeira
Vai ser a primeira, que seja feliz

Sombra fugidia

António Rocha / Popular *fado menor*
Repertório de António Rocha


Vem, ó sombra fugidia 
Folha verde em meu outono
Gota cristalina e fria
Neste sede de abandono

Verde esperança sem sentido 
Onda revolta de mar
Onde navego perdido 
Em busca do teu olhar;
Verde esperança sem sentido
Sentido de te alcançar

Vem enquanto a lua espreita 
Dorme o sol em meu passado
E uma saudade se deita 
No meu leito abandonado;
Vem enquanto a lua espreita
O teu corpo imaginado

Traz uma nova alvorada 
Ao escurecer da minha idade
Que já se sente cansada 
D’esperar tua verdade;
Traz uma nova alvorada
P’ra matar esta saudade

Compasso

Amadeu Diniz da Fonseca / Amadeu Diniz da Fonseca e Jorge Silva
Repertório de António Pinto Basto

Dá-me um abraço e dá-me um beijo
Segue o compasso do meu desejo
Dá-me um momento do teu segredo
Cobre o meu espaço sem dor nem medo

E vem sentir num sonho breve
Esta empatia desperta em nós
Este caminho que nos envolve
Na alegria ao estarmos sós

E dá-me as mãos e dá-me o gosto
Desse sorriso aberto e justo
O teu regaço, minha aventura
O meu cansaço, a minha cura

E deixa ouvir os sons da terra
E deixa sentir a força do mar
P’ra lá das portas e das janelas
Que não se cansam de nos guardar

E proteger, de nos unir
De nos receber e ver-nos partir
P’ra lá das fontes, p’ra lá da foz
Desse infinito que corre em nós

Por te amar perdi a Deus

Sérgio / Júlio Proença *fado puxavante*
Repertório de Ana Rosmaninho
Desconhece-se a estrofe que deveria glosar o 2° verso do mote.

Por te amar perdi a Deus
Por teu amor me perdi
Agora vejo-me só
Sem Deus, sem amor, sem ti


Sem fé navego na vida 
Por culpa dos olhos teus
Hoje sinto-me perdida 
Por te amar perdi a Deus

Quando os teus olhos choraram 
Tive pena, senti dó
Mas mentiram e enganaram 
E agora vejo-me só

E perdida nesta estrada 
Que a teu lado percorri
Sigo triste e abandonada 
Sem Deus, sem amor, sem ti

O tempo não passa

António Vasco Moraes / Francisco Viana *fado vianinha*
Repertório de António Vasco Moraes


Cheguei a meio da noite
Da noite da tua vida
Procurando quem me acoite
Esta alma tão despida

Ao longo do meu caminho 
Cheguei a este cansaço
Tenho agora o teu carinho 
O teu colo, o teu abraço

Nele quero descansar 
P’ra sempre ficar em paz
Afogar-me em teu olhar 
Nunca mais olhar p’ra trás

Sentir que o tempo não passa 
Não passa, já se desfez
É o meu corpo que te abraça 
Que te abraça outra vez

Ti Alfredo

Francisco Nicholson / Braga Santos
Repertório de Anabela


Tio Alfredo, quando às tantas
Vou p’las vielas à toa 
Oiço a tua voz nos céus
Cantas p’ra santos e santas 
O teu fado de Lisboa
Encantas o próprio Deus

Lá do alto a que subiste
Na viagem sem regresso 
Que nos leva à eternidade
Certamente ‘inda não viste 
Tudo o que fez o progresso
Da nossa querida cidade

Sob a luz dum candeeiro
Já não se descobre o fado
No rosto de uma mulher
Tio Alfredo Marceneiro
Se visses não querias crer;
Mas chega o anoitecer
Traz a saudade que voa
Para a estrela aonde estás
Porque o fado há-de viver
Enquanto existir lisboa
Alfredo descansa em paz


Na casa da Mariquinhas
Que outrora foi das mais belas 
Vive hoje uma doidivanas
Deitou fora as tabuínhas 
Que alindavam as janelas
E mandou pôr persianas

O ardinita, João
Ninguém ouviu nunca mais
Apregoar nas esquinas
Aquele belo pregão 
Que dava vida aos jornais
Estão a acabar os ardinas

Sonho junto ao rio

António Rocha / Manuel Mendes
Repertório de António Rocha


Corria o Tejo calmo e lentamente
Um cheiro a maresia enchia o ar
E eu ali parado à tua frente
Perdido nos teus olhos verde mar

Uma brisa suave acariciava
O teu rosto sereno, encantador
Enquanto a minha voz balbuciava
Num som imperceptível, meu amor

Esvoaçavam gaivotas ondulantes
Numa dança que fazia lembrar
O bailar dos meus olhos suplicantes
Perdidos nos teus olhos verde mar

É testemunha a tarde que morria
De tudo quanto o teu olhar não viu
Na paisagem, no amor, na fantasia
Deste sonho nascido junto ao rio

O salgueiro

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório de Célia Barroca


Ai salgueiro, porque choras
Porque te pões a chorar?
Perdi um amor de mel
Num barquinho de papel
Nas areias deste rio
Eu cravei minhas raízes
Vão-se amores, vão-se mágoas
E venham horas felizes

Sentinela deste Tejo
Sou salgueiro cabisbaixo
Que um salgueiro à borda d’água
Sonha ir p’la água abaixo
Nas areias deste rio
Construí minha cabana
Veio a chuva no inverno
Pintou-me a cama de lama

Ai salgueiro, porque choras
Porque te pões a chorar?
Quem me dera ‘star contigo
Seguro nesse lugar
O salgueiro à borda d’água
Mergulha no pensamento
De ser livre como as aves
De ser livre como o vento

Resta-me a esperança

António Rocha / Alfredo Duarte *marcha do marceneiro*
Repertório de António Rocha


Mais um dia sem te ver
Menos um dia de vida
Sem te ouvir, sem te falar
Porque vieste acender
Esta chama adormecida
Que eu não queria despertar

Quanto mais foges de mim
Tanto mais perto te sinto
Menos consigo esquecer-me
Mas se apareces por fim
Vejo-me num labirinto
Onde receio perder-me

O amor que em mim despertaste
É rio que corria manso
E hoje transborda do leito
Falei-te, não me escutaste
Estendo os braços, não te alcanço
Aumenta a angústia em meu peito

Angústia que não se cansa
Desde o dia em que te vi
De me prender em seus laços
Resta-me apenas a esperança
Que não fujas mais de ti
E te entregues em meus braços

Confissão

Amadeu Diniz de Fonseca / Popular *fado moleirinha*
Repertório de António Pinto Basto


Passei a vida a correr o mundo inteiro
Dei tantas voltas que nem vão acreditar
Se alguém disser que eu minto, é o primeiro
Contando aquilo que vos quero confessar

Vale sempre a pena lutar p’lo que se quer
Mas nada iguala o amor duma mulher

Vi tantos rios, tantos vales, tantas montanhas
Tantas planícies e cidades tão formosas
Lugares tão belos, de mil cores, vistas tamanhas
Cheias de vida, de lendas fantasioas

Mas não me digam que há um lugar sequer
Mais deslumbrante que um sorriso de mulher

Todos os mares da terra inteira naveguei
Em mil lugares acostei e percorri
Até sereias, julgo eu que as vislumbrei
Por entre as ondas desses mares que eu já vi

Mas de certeza que ainda está para nascer
Coisa mais bela que o olhar duma mulher

Toda a beleza do que nasce tem um fim
A vida tem tempos diferentes p’ra lembrar
Mas quero eu ter a cantar perto de mim
Na hora certa que Deus me queira levar

Na solidão do momento, já sem a ver
A voz serena, cheia de luz, duma mulher

A vida é bela, a vida é linda
Uma graça infinda
Esta benção de viver
É uma aventura e a vida ainda
É mais bem vinda 
Com o amor duma mulher

Foste uma ilusão

António Rocha / Fontes Rocha *teu nome simplesmente*  
Repertório de António Rocha

Pensaste que eu buscava uma aventura
Um risco mais no meu rol de prazer
E viste devaneio onde a ternura
Vibrava no mais fundo do meu ser

Recordo as horas que comigo estavas
Quando só eu falava e tu ouvias
E as escassas respostas que me davas
Me faziam pensar que me entendias

Escutavas as palavras que eu dissesse
Sorrindo para mim cada momento
Por isso me confunde e entristece
A tua ausência, o teu afastamento

Ainda não consigo compreender
O que faz tomar tal atitude
Pois quem melhor pansamos conhecer
É quem mais fácilmente nos ilude

Cantando este poema para ti
Mais uma vez abri meu coração
Olha-me bem nos olhos e sorri
E diz-me que não és uma ilusão

Envelhecer

Maria Manuel Cid / Franklim Godinho *fado franklim 4as*
Repertório de Teresa Tarouca


Quando o fadista velhinho
Já não tem voz p’ra cantar
Começa a rezar baixinho
E principia a chorar

Tem pena da mocidade
Mas não lhe importa morrer
Que lhe importa de verdade
É sentir-se envelhecer

E da vida já vivida
Recordando a mocidade
Tenta viver outra vida
Toda feita de saudade

E o seu peito magoado
Já não tem voz p’ra cantar
Guarda no peito o seu fado
E prinicipia a chorar

Caixeirinha do Grandella

Carlos Baleia / Nuno Nazareth Fernandes *fado caixeirinha*
Repertório de António Pinto Basto


Certa manhã no Grandella 
Vi a bela caixeirinha
E preso nos olhos dela 
Quase esqueci ao que vinha
Pois beleza como aquela 
Dava-lhe um ar de rainha
E a simples entretela 
Que era coisa pobrezinha
Só por roçar nas mãos dela 
Era da seda, vizinha

Ai, a bela caixeirinha 
Que morava na viela
Onde voltava à tardinha 
Comigo sempre atrás dela
E na porta da tasquinha 
Plantei-me de sentinela
Guardando a rua estreitinha 
Que parecia larga e bela
Pois a beleza que tinha
Sendo enorme, era singela

E, sempre olhando p’ra ela 
Vi que o seu ar de rainha
Era a imagem mais bela 
Da Lisboa ribeirinha
Meus olhos não tirei dela 
Jurei que seria minha
Não há poder de um Grandella 
Ou duma baixa inteirinha
Que impeça a caixeira bela 
De me dar o que eu não tinha

Com a paixão alfacinha 
Inspirada p’la donzela
Decerto que se adivinha 
Que aquela caixeira bela
Que da baixa era rainha 
Deixou de ser do Grandella
E que a casa tão velhinha 
Que antes era apenas dela
É agora também minha 
E o sol inunda a viela

Na voz dos trigais

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório de Célia Barroca


Fui um sonhador
Esculpi oceanos e mastros e velas
Tracei areais 
E nos verdes pinhais talhei caravelas

Fui aventureiro 
Num mar de paixão, de luz e de sombras
Um rude marinheiro
A tanger modinhas ao sabor das ondas

Já fui trovador nos paços reias
E fui lavrador 
A escutar o mundo na voz dos trigais

Sou filho do povo e andei embarcado
Eu já fui à guerra, eu já fui soldado
Do mar e da terra me fiz namorado

Eu já fui profeta, eu já fui cantor
Eu já fui poeta, fiz trovas de amor

Já fui trovador
Cantei a verdade
Eu já fui à guerra
E da guerra não trouxe 
Nem pão, nem saudade

Quadras da minha solidão

Alda Lara / Jaime Santos *fado da bica*
Repertório de António Vasco Morais


Fica longe o sol que vi
Aquecer meu corpo outrora
Como é breve o sol daqui
E como é longa esta hora

Donde estou vejo partir 
Quem parte certo e feliz
Só eu fico e sonho ir
Rumo ao sol do meu país

Mas dor de quê? dor de quem?
Se nada tenho a sofrer
Saudade, amor, sei lá bem
É qualquer coisa a morrer

E assim no pulso dos dias
Sinto chegar outro outono
Passam as horas esguias
Levando o meu abandono

No Tejo escrevi meu nome

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório de Célia Barroca


No Tejo escrevi meu nome
Com minhas mãos de criança
Com mil desejos de afagos
Entre risos e entre esp’rança

Areias foram ternura
Salgueiros foram abraço
E as águas cor de prata
O espelho do meu cansaço

Entre estevas e papoilas
Entre verdes canaviais
Trilhei caminhos descalços
Semeei fundo meus ais

Ao Tejo pedi sustento
Com minhas mãos lavadeiras
Nas doces águas do estio
Nas de inverno traiçoeiras


Ai que saudades que eu tenho
Dos tempos de rapariga
Quando a tristeza lavava
Nos versos duma cantiga

Ao tejo dei-me inteirinha
Dei minhas mãos lavadeiras
Dei minha alma de mulher
Num corpo de mil canseiras

Rio que corres p’ra tão longe
Os meus sonhos não mos leves
Que os momentos de alegria
São tão poucos, são tão breves

Açorda d’alho

Joaquim Banza / Joaquim Marrafa
Repertório de António Pinto Basto 
Participação do Grupo de Cante da Damaia

É fácil fazer, dá pouco trabalho
É água a ferver, coentros e alho
Coentros e alho e água a ferver
Dá pouco trabalho e é fácil fazer


Alhos, coentros e sal
Também se faz com poejo
Esse manjar que nasceu
Lá dentro do nosso Alentejo;
Depois dos alhos pisados
E com a água a ferver
Corta-se o pão aos bocados
Está pronta, vamos comer

Com o panito bem duro
E um ovo para escalfar
O azeite bom e puro
Não há melhor paladar;
Açorda com bacalhau
E azeitonas pisadas
Também não é nada mau
Com umas sardinhas assadas

Lembro-me, quando era moço
Antes de ir p’ró trabalho
Comer ao pequeno almoço
Uma bela açorda d’alho;
Já meus avós me diziam
A força que a açorda dá
Todos os dias comiam
E dez filhos já estão cá

Terra queimada

Célia Barroca / Luís Martins
Repertório de Célia Barroca

Tanta terra já queimada
Tanto tojo a despontar
Tanta papoila encarnada
Tanto sonho por lavrar

Nesta terra abandonada
Tudo lembra o teu olhar


Corre o rio no seu leito
E em seu jeito, murmuro
Trovas que trago no peito

Acorda-me o rouxinól
E à noite o vento faz-me chorar

Nesta terra abandonada
Tudo lembra o teu cantar

As sandálias cor-de-rosa

Eduardo Olímpio / Paco Bandeira
Repertório de António Pinto Basto


Não calces as sandálias cor-de-rosa
Essas sandálias são o meu martírio
Com elas tu desenhas verso em prosa
E fazes da calçada um chão de lírio

Se desces para Alfama, há uma viela
Que fica enamorada e a teus pés
Teus passos, toc-toc, uma aguarela
E o Tejo muda o curso das marés

As tuas sandálias
São duas Amálias 
Cantando a ternura
São o Marceneiro
Gingando certeiro 
Como a vida é dura

São Cesário Verde
Que em rimas se perde 
E como eu invejo
Fernando Pessoa
A namorar Lisboa 
Que namora o Tejo

Se vais ao Bairro Alto ouvir um fado
Tuas sandálias pisam a ternura
Mesmo que o verso tenha um tom magoado
O teu andar é sempre uma aventura

O cor-de-rosa das tuas sandálias
Lembra um jardim florido em movimento
Ramos de rosas, de tulipas, de dálias
Que nunca foram minhas e eu lamento

Memória de um tempo

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório de Célia Barroca


Rosa, que sonhaste?
Foi um sonho antigo!
Memória de um tempo
Que bate ao postigo

Rosa, que sonhaste
Que te fez chorar?
Sonhei-me menina 
Na rua esquecida
E que a meio da vida 
Me vem acordar

Deixa-me embalar na noite
Esse sonho sonho antigo
Verás que não volta
Se eu dormir contigo

Deixa-me ficar na noite
Que bate ao postigo
Que o medo não volta
Se eu dormir contigo

A Graça

Letra e música de Amadeu Diniz da Fonseca
Repertório de António Pinto Basto


Ai que coisa sem graça
Tamanha desgraça a de não a ver
Já nem sei o que faça
Para que a Graça torne a aparecer
Ando de volta na Graça
Não sei que se passa nesta Lisboa
Não ver a Graça na Graça
Qual é a Graça? Não se perdoa!

Ó Graça aparece na Graça
Se alguém que passa não te quer bem
É gente que não tem graça
E inveja a Graça que a Graça tem


A Graça é tão engraçada
A sua graça não tem igual
Ao vê-la passar na Graça
Com sua graça tão natural
Por onde andará a Graça?
Graça escondida é minha tristeza
A Graça faz falta à Graça
Graça prendada da natureza

A Graça tão graciosa
Vai aparecer num dia qualquer
No meio da Graça, vaidosa
Abraço a Graça se ela quiser
Ó Graça por tua graça
Aparece na Graça, faço questão
Eu quero que saibas, Graça
Que te dou de graça o meu coração

Minha amada Lisboa

Marco Oliveira / Tiago Derriça
Repertório de Marco Oliveira


A minha amada Lisboa
Tem o azul do tejo no olhar
Toda a cidade se ilumina
Quando penteia o seu cabelo ao luar
Conto as estrelas no seu rosto de menina

A minha amada Lisboa
Perfuma cada rua de saudade
E nas vitrinas da avenida
O seu vestido vais espelhando a claridade
Quando ela passa nos meus dias distraída

Que será das vielas e da ponte sobre o rio
Quando encontrar outro lugar nos sonhos dela
Se ela partir sem um adeus no seu navio
Não há-de haver outra cidade como ela


A minha amada Lisboa
Quer ver nascer o sol no meu inverno
Quer ver a chuva em pleno agosto
E andar molhada no Rossio um dia eterno
Quando ela dança o meu sorriso é fogo posto

Que será das vielas que deixou no meu olhar
Quando o luar vier espreitá-la na janela
Daquela casa que deixou sem avisar
Sei que Lisboa vai sentir a falta dela

Nas águas do meu navio

Afonso Duarte / Borges de Sousa
Repertório de Célia Barroca


Nas águas vai meu navio
Leva amor que se carrega
É na graça e no feitio
O meu olhar que navega

O mar bate-se na praia
E as águas curvam-se em ondas
É o meu olhar que desmaia
Nas suas formas redondas

Uma se quebra atrás duma
Meus olhos perderam olhos
Querira Deus que a sua espuma
Não traga um feixe de escolhos

São duas ondas de mar
Que se saúdam no rosto
Sendo ambas do meu olhar
Só uma travo com gosto

Fado amargura

Ana Sofia Paiva / Marco Oliveira *fado amargura*
Repertório de Marco Oliveira


Contemplo da janela a madrugada
Os carros vão varrendo as avenidas
Perfume de miséria adocicada
Que aos poucos embriaga as nossas vidas

Contemplo esta saudade rotineira
Manchando de vergonha toda a rua
A minha própria dor à cabeceira
Do tédio a que meu corpo se habitua

E as pombas, guardiãs do cemitério
Em que a velha cidade se transforma
Com asas de mortalha e de mistério
Cinzeiro que do céu todo se entorna

Contemplo este compasso de quebranto
Entre a vida que passa e a que ficou
Contemplo esta amargura que hoje canto
Contemplo e jã não sei dizer quem sou

Um dia atrás do outro

Tiago Torres da Silva / Pilar Homem de Melo
Repertório de Célia Barroca

Não olhes p’ra mim dessa maneira
Como se eu fosse jardim e tu roseira

Manhãs luminosas estão à espera
Então porque não dás rosas… é primavera

O amor é uma andorinha, quando sente frio
Enfrenta sózinha um céu vazio

O ninho do meu peito, o beiral de um telhado
Pelas tuas mãos desfeito, pelas minhas moldado

Não esperes do meu corpo uma rotina
Um dia atrás do outro não é sina

O sol atrás da lua e das marés
É assim que eu sou tua e tu não vês

Que é feito da Mariquinhas?

Marco Oliveira e Ana Sofia Paiva / Marco Oliveira
Repertório de Marco Oliveira

Que é feito da Mariquinhas?
Há muito que ninguém a vê passar
Foi nas suas tamanquinhas
A casa já está pronta pr’alugar
Quem é que se lembrou de a pôr a andar?
Não se riam as vizinhas
Que dizem que foi desta p’ra pior
Só não sabem, coitadinhas
Quem ri por último é quem ri melhor

Vendeu o espelho e a colcha com barra
Ao preço dumas uvas miudinhas
Mas se ela deixou lá uma guitarra
Um dia há-de voltar, a Mariquinhas

Que é feito da Mariquinhas?
Ninguém sabe onde param as amigas
Correrem as capelinhas
Não há sinal daquelas raparigas
E vai um bairro inteiro prás urtigas
E a saga continua
Ainda vai no adro a procissão
Quem lá vai não se habitua
A falta que ela faz não tem perdão

Rifou as bambinelas mais a jarra
Os móveis e as cortinas às pintinhas
Mas se ela deixou lá uma guitarra
Um dia há-de voltar, a Mariquinhas

A rua está cada vez mais bizarra
Custam couro e cabelo umas ginginhas
O fado que gostava de algazarra
Perdeu a Rosa, o Chico e a Mariquinhas

Lisboa já não é como a cigarra
Espantaram os boémios alfacinhas
Mas se deixaste lá uma guitarra
Adeus, até à volta, Mariquinhas

Pena

*Rua Martin Vaz n°2*
Ana Sofia Paiva / Armandinho *alexandrino do estoril*
Repertório de Marco Oliveira


Lisboa é uma criança perdida ao pé do mar
Sem casa onde dormir, trapeira onde morar
Brincando alheia à dor, ao vento que assobia
Por entre o doce véu de alguma gelosia

Lisboa é uma criança de crua pele morena
No pátio escuro e pobre da vila mais pequena
Lá vai descendo a rua, velhinha e descalçada
Vender laranja nova por pouco ou quase nada

Noturno passarinho, cativo de orfandade
Correr da doce mágoa ao colo da cidade
Deixando duras penas a quem quiser cantar
Lisboa é uma criança perdida ao pé do mar

Lágrima tola

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório da autora


Que lágrima tola percorre este fado
Sal derramado sem cor nem sentido
Mágoa tão amarga, não sei donde vem
De um sonho de alguém que o terá perdido

Mágoa tão antiga
Que já não me ocorre
Se é viva ou se morre


Que lágrima tola percorre este fado
Sal derramado p’la vida fugida
Que sal tão salgado, ai que água tão fria
Que lágrima tola percorre este dia

Fado sem ti

Manuela de Freitas / João Black *fado menor do porto*
Repertório de Marco Oliveira


Sempre quis cantar um fado
Que não falasse de ti
E de tanto ter tentado
Finalmente consegui

Que só tu é que me inspiras 
Que só de ti é que eu falo
Mentiras, tudo mentiras 
Este fado vai prová-lo

Será um fado diferente 
De todos que já cantei
Falarei de toda a gente 
Mas de ti não falarei

Nem falo, não há razão 
Disto que sinto por ti
De seres a maior paixão 
De todas que eu já vivi

E como vês meu amor 
Eu não cedo à tentação
Falo seja do que for 
Falar de ti é que não

E assim fica provado 
Que tentei e consegui
Cantei finalmente um fado 
Sem nunca falar de ti

Meu canto de viela

Artur Ribeiro / Amadeu Ramim *fado zeca*
Repertório de Fernando Maurício


Há neste meu cantar feito viela
Qualquer coisa sequer que não entendo
Que tanto podem ser saudades dela
Como queixas de mim que vou fazendo

Há neste meu cantar das madrugadas
Um anseio de ser o que não sou
Que tanto podem ser pequenos nadas
Como versos que mais ninguém cantou

Há neste meu cantar feito amargura
Coisas que nem sequer devo lembrar
E que me fazem ir p’la noite escura
À procura de quem não devo amar

Rua da saudade

Ana Sofia Paiva e Marco Oliveira / Marco Oliveira
Repertório de Marco Oliveira


Aquela rua 
Junto ao largo da infância
Onde a vida continua 
A marcar uma distância
Quem nela mora 
Vê o espelho doutra idade
Quando a tarde se demora 
Nos olhos duma saudade

Na Rua da Saudade 
Não há cravos nas janelas
As portas ‘stão fechadas
Não há luz por dentro delas
Poeira do passado
Silêncio de oração
Molduras desmaiadas
Retratos de ilusão;
Na Rua da Saudade
Algo fica de quem parte
Um beijo, uma promessa
De amanhã reencontrar-te
Quem dera ver-te ainda 
À espera de voltar
À Rua da Saudade
Que foi sempre o teu lugar


Naquela rua 
Ao largo de São Martinho
Vi brinquedos de madeira
Um cavalo, um passarinho
Calçada escura 
Que Santo António abençoa
Ao relento da ternura
Coração de outra Lisboa

Na Rua da Saudade 
Ninguém passa sem chorar
O tempo de mansinho
Adormece a ver passar
Tão belas são as sombras 
Dos pátios ao luar
Saudades e encantos
De quem nos quer lembrar;
Algo fica de quem parte
Um beijo, uma promessa
De amanhã reencontrar-te
Quem dera ver-te ainda 
À espera de voltar
À Rua da Saudade
Que foi sempre o teu lugar

Fado das docas

Letra e música de Célia Barroca
Repertório da autora


Corri Lisboa, becos escadinhas 
Do Bairro Alto à Madragoa
Segui-te o rastro
Neste meu passo que apresso e troco
Procurei-te o rosto
No fundo baço de mais um copo

Mas foi nas docas
Mas foi nas docas
Que o teu olhar me encheu a noite 
De rosas rubras

Deste-me a mão
Sorriu-me o Tejo e não vi mais nada
Pediste-me um beijo
Disse que sim dum’assentada

Cumpriu-se o amor já prometido
Num beijo aceso, num beijo aceso
Num vão de escada p’la madrugada

Fado inventado

Tiago Torres da Silva / Joaquim Campos
Repertório de Célia Barroca

Inventei uma palavra
P’ra te dizer ao ouvido
De cada vez que acordava
Do teu beijo adormecido

Inventei um sentimento 
P’ra trazer a eternidade
À doçura do momento 
Em que se inventa a saudade

Inda inventei uma cor 
Que da chama duma vela
Fizesse abrir uma flor 
Mas não murchasse com ela

Depois, deixei-me dormir 
Ao sentir adormecer
O que não pode fugir 
De quem se inventa ao nascer

Inventei uma quimera 
Que no escuro nos guiasse
E deixei-me estar à espera 
Que o teu amor me inventasse

Eterna namorada

Ana Sofia Paiva / Miguel Ramos *fado margarida*
Repertório de Marco Oliveira


Lisboa, minha eterna namorada
Acordo quase sempre p’ra te ver
Tu és manhã tardia e sossegada
Dum tempo que eu não tenho p’ra perder

Mas quando eu dou por mim preso à janela
Poisado como as pombas e os pardais
Contemplo esta cidade em aguarela
Reparo que ela e eu somos iguais

O sono entristecido das cortinas
Ao vento côr-de-rosa, desmaiado
Estendendo a vida inteira p’las colinas
Na corda dum relógio já cansado

Ao longe, a voz antiga das canções
Magoa as margaridas dos quintais
Lisboa que envelhece os corações
No fundo eu e tu somos iguais

À hora da partida

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório da autora


À hora da partida, em cada voz
Um fado triste das vielas
À hora da partida
Minha alma é noite e ansiedade

No cais das descobertas, o meu navio
No meu navio flutua um sonho
Acendem-se as estrelas por meus guias

No cais das descobertas calou-se o fado
Lisboa não vive nem morre, Lisboa dorme
No coração um resto de saudade

Não cabem nesta hora despedidas
Chama por mim um mar de esquecimento
Cidade de chegadas, cidade de partidas
Não coube em ti meu sonho e meu tormento

De cada noite perdida

Marco Oliveira / João David Rosa *fado rosa*
Repertório de Marco Oliveira


Trago ruas e memórias
De cada noite perdida
São retratos das histórias
Do fado da própria vida

A vida que vai passando 
Lembra mais um sonho ausente
As saudades vão ficando 
No olhar de toda a gente

Quando a noite nos abraça 
Nas ruas onde passamos
Há sempre alguém que lembramos 
Num passado que não passa

A luz do céu da cidade 
Vem beijar a nossa calma
Como o tempo traz saudade 
Às ruas da nossa da nossa alma

São retratos das histórias 
Do fado da própria vida
Trago ruas e memórias 
De cada noite perdida

Bebido o luar

Sophia Melo Breyner / Helena Maria Viana
Repertório de Maria do Rosário Bettencourt

Bebido o luar e ébrios de horizontes
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar

Mas solitários somos e passamos
Não são nossos os frutos nem as flores
O céu e o mar apagam-se em exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos

Porquê jardins que nós não colheremos
Límpidos nas auroras a nascer
Porquê o céu e o mar se não seremos
Nunca, os deuses capazes de os viver

Sombra

Hélia Correia / João Blak *fado menor do porto*
Repertório de Carlos do Carmo

No mais profundo da gente
Onde nem a vista alcança
Uma outra vida balança
Entre o passado e o presente

No mais profundo de nós 
Onde ninguém se aventura
Anda a canção à procura 
Da voz que lhe há-de dar voz

P’ra lá do muro assombrado 
Onde nem luz se adivinha
Esvoaça aquela andorinha 
Que vem morrer no meu fado

E dizem que a voz não vem 
De particular garganta
Que não sabemos quem canta 
Sempre que em nós canta alguém

Não somos mais que centelha 
Que a própria sombra acendeu
Mas basta um poema e o céu 
Que está tão longe e ajoelha

Conheces-me

José Fernandes Castro / José Marques *fado triplicado*
Repertório de Ana Margarida Leal

Tu sabes bem quem eu sou 
Onde estou / e onde vou
De mim sabes quase tudo
Sabes até que o meu fado
Marcado / p'lo teu passado
É um grito quase mudo

Tu conheces bem a cor 
E o valor / que tem a dor
Quando a despedida vem
Conheces a realidade 
Da saudade / que m'invade
Pela saudade de alguém

A saudade é mais veloz 
Do que a voz / sempre que nós
Sentimos a alma fria
Para matar a frieza
E a tristeza / tão acesa
Canto por ti noite e dia

Cantando estou bem melhor 
Tenho o vigor / e o fulgor
Que só o fado contém
Amor que não esqueci 
Canto por ti / e p'ra ti
Porque me conheces bem

Minha alma, meu fado

José Fernandes Castro / João Blak *fado menor do porto*
Repertório de Eugénia Maria

Dei a alma toda ao fado
Fui fadista a vida inteira
Neste jeito dedicado
De honrar a minha Madeira

Nasci fadista por sina
Sou fadista por condão
Mulher que já foi menina
Outono que foi Verão

Ainda tenho vontade
De mostrar com grande empenho
Esta alma que mantenho
Que a alma não tem idade

Vivo feliz, na certeza
De ter dado por inteiro
Este jeito verdadeiro
De ser mulher portuguesa

O lençol desta paixão

Bernardo Sá Nogueira / Carlos da Maia *fado perseguição
Repertório do autor


Gosto tanto de te ouvir
De olhar tua boca a abrir
A soltares teu coração
Que qualquer dia, p’ra ver
A teus pés irei estender
O lençol desta paixão

Vou falar que a alma aqueces
Que me abrasas e entonteces 
Com teu canto cristalino
Que ao escutar-te, já esquecido
Me sinto às vezes perdido 
Nas malhas do meu destino

Vou gritar: quero-te agora
Que me não basta uma hora 
Nem carinhos de ternura
Saberás, assim o espero
A razão por que te quero 
Sem mágoas, nem amargura

Mas se efeito não fizer
Tudo o que então te disser 
Por agora eu fico assim
O meu desejo é imenso
Não raciocino, não penso 
Quando estás ao pé de mim

Amor de madressilva

Cália Barroca / Popular / Luís Petista
Repertório da autora


Eu trago o beijo das rosas
O cheiro das madressilvas
Nos meus olhos, brilhos mansos
Nos lábios, doces cantigas

Trago ribeiras que riem
Por entre as pedras doiradas
Trago campos de papoilas
Em serenas madrugadas

Vai p’rá torre São João
Vai p’rá torre
Vai p’rá torre 
São João de Barra
Vai p’rá torre, vai p’rá torre
Vai p’rá torre tocar guitarra


Trago o mistério da vida
No rio do meu desejo
Trago o amor a bailar
Nos olhos com que te vejo

Vida curta anda depressa

Bernardo Sá Nogueira / Joaquim Campos *fado puxavante*
Repertório do autor


Num instante, num segundo
Vida curta anda depressa
Toda a beleza do mundo
Coração jamais apressa


Vivemos como imortais
Mas sabendo, lá no fundo
Que as horas passam, fatais 
Num instante, num segundo

Nossa existência se faz 
Numa flecha e atravessa
O tempo, de trás a trás 
Vida curta anda depressa

Sem parar por um só dia 
De meu fado a terra inundo
Devorando co’ alegria 
Toda a beleza do mundo

Nun galope, num rompante 
Sem que mar ou rio o impeça
Tua estrela rutilante 
Coração jamais apressa

Ai o fado

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório da autora

Ai o fado, o que é o fado
É a lágrima teimosa
Que teima sempre e que cai
O meu fado é mais um ai
A rimar com o passado

É este cantar chorado
Como uma prece de santa
E eu sou mais uma que canta
O amor que passa ao lado
Que passa por este fado

Ai o fado, o que é o fado
É o verso e o reverso que atravesso
Nestas horas a cismar
É a saudade a bailar
É a sombra do passado
É o amor que passa ao lado
E eu sou mais uma a cantar

Procurei e encontrei

José Fernandes Castro /Alfredo Marceneiro *menor-versículo*
Repertório de Carlos Coelho


Procurei-te num poema / genial
Encontrei-te felizmente / meu amor
Tinhas a força suprema / divinal
Duma rima diferente / por compor

Rimavas com madrugada / por nascer
Rimavas com tempestade / sonhadora
Tinhas na pele perfumada / p’lo prazer
A essência da verdade / encantadora

Tinhas no corpo a vontade / renovada
Dum verso feito p’lo mar / do coração
Tinhas sol de liberdade / controlada
No teu doce respirar / por sedução

Tinhas marca de futuro / desejado
No perfil da tua imagem / singular
Em ti, tudo era puro / e sem pecado
Meu amor, minha coragem / para amar

Este castigo

Célia Barroca / Luís Petisca
Repertório da autora


Quantos céus
Quantas noites, quantos dias
Quantos sóis me alumiaram
Em pramessas de alegrias

Quantos voos 
Em primaveras de pranto
Cresceram no meu olhar
Se afundaram no meu canto

Quantas horas
Neste morrer acordada
Quanta raiva no silêncio
Da minh’alma amordaçada

Tudo morre
Só não morre este castigo
As dores do pensamento
Que arrasto sempre comigo

Poemas canhotos

Herberto Hélder / António Vitorino d’Almeida
Repertório de Carlos do Carmo


Estes poemas que chegam 
Do meio da escuridão
De que ficamos incertos 
Se têm autor ou não
Poemas às vezes perto 
Da nossa própria razão
Que nos podem fazer ver 
O dentro da nossa morte

As forças fora de nós 
E a matéria da voz
Fabricada no mais fundo 
De outro silêncio do mundo
Que serão eles senão 
Uma imensidão de voz
Que vem da terra calada 
Do lado da solidão

Estes poemas que avançam 
No meio da escuridão
Até não serem mais nada 
Que lápis, papel e mão
E esta tremenda atenção, este nada

Uma cegueira que apago 
A luz por trás de outra mão
Tudo o que acende e me apaga 
Alumiação de mais nada
Que a mão parada

Alumiação então 
De que esta mão me conduz
Por descaminhos de luz 
Ao centro da escuridão
Que é fácil a rima em Ão 
Difícil é ver-se a luz
Rima ou não rima co’a mão

Saudade cantadeira

José Fernandes Castro / Georgino de Sousa *fado georgino*
Repertório de Angela Pimenta

A saudade foi ao fado
Mais uma vez com vontade
De pôr a alma à janela
Por lá ficou, lado a lado
Com a dona felicidade
Que também lá foi com ela

Ficaram juntas ao canto
Da sala, aonde os cantores 
Punham nostalgia em nós
E foi com algum espanto
Que ao ouvir falar d'amores 
A saudade ganhou voz

Cheia de brio e de garra
Movida p'la poesia 
A saudade motivou-se
Depois, ao som da guitarra
Cantou com rara mestria 
E o fado emocionou-se

Com o olhar marejado
Com a alma bem acesa 
E de peito a bater forte
A saudade e o senhor fado
Deram alma portuguesa 
Ao fado da nossa sorte

Bem-disposto então vá

Júlio Pomar / Paulo de Carvalho
Repertório de Carlos do Carmo


Bem-disposto então vá 
Pão e vinho sobre a mesa
E cozido à portuguesa? 
É sexta-feira, não há

Bem-disposto então vá 
No cavalo do poder
De burro, não chega lá 
De mula, iremos ver

Bem-disposto então ó meu
Quem é t’acaba o resto
Das cantigas de protesto? 
Inda me passas a réu
Bem-disposto então vá 
Alevantado do chão
E o bem é da nação
Acabou-se a festa, pá

Bem-disposto então vá 
Lá fora ver a mudança
Viver sempre também cansa 
Descanso é que não há

Bem-disposto então vá 
Que a fome não enganas
Saiam finos e bifanas 
Para mais é que não há

Bem-disposto então vá 
E depois para limpar
Dava jeito um Salazar 
Nem por brincadeira, pá

Pois zero de mão beijada 
Te será dado de graça
No país que vai à praça 
Por pó, terra, cinza e nada

Sopro madeirense

José Fernandes Castro / Júlio Proença *fado esmeraldinha*
Repertório de Maria José Figueira


O sopro do meu fado é um poema
Que canto à minha Ilha da Madeira
Poema que só tem força suprema
Por ser cantado assim desta maneira

Cantando com prazer e com rigor
Sentida pela alma que hoje sou
A força deste fado tem a cor
Da fé que o céu da ilha me ensinou

A minha condição de ser fadista
É culpa desta raça portuguesa
Que não se compra, apenas se conquista
Com brio e com muito mais nobreza

O sopro do meu canto é este amor
Que faz de mim um ser abençado
Bendito este jardim encantador
Bendita esta Madeira do meu fado

Vai devagar coração

António Rocha / Raúl Pinto *fado raul pinto*
Repertório de António Rocha


Silêncio em horas perdidas
São meus tristes pensamentos
Vai devagar coração
P’ra não viveres duas vidas
Nestes escassos momentos
De doce recordação

Coração, não me condenes
Porque te faço sentir
Que segues caminho errado
Mas eeu não quero que penes
Nem te deixes iludir
Na mentira do meu fado

Fado que não te convém
Porque não tem pró guiar
O calor daquela mão
Que há muito espero e não vem
Não te deixes arrastar
Vai devagar coração

Não voltes

Moita Girão / Pedro Rodrigues
Repertório de Fernando Maurício


Porque teimas em seguir
Cegamente a caminhar
Na poeira dos meus passos
Não vês que eu ando a fugir
A fugir de te apertar
Novamente nos meus braços

Desde o dia em que abalaste
Do jardim do nosso amor 
A saudade não se mede
As rosas murcham na haste
Os cravos perdem a cor 
E os lírios morrem à sede

Se o inverno se avizinha 
Eu já sou não como era 
Cai tanta neve em meu peito
Não podes ser andorinha
Que volta na primavera 
Ao ninho que deixou feito

Sabes que não sei mentir
Se hoje só te posso dar 
Um coração em pedaços
Deixa-me andar a fugir
A fugir de te apertar 
Novamente nos meus braços

Mariquinhas.com

Vasco Graça Moura / Paulo de Carvalho
Repertório de Carlos do Carmo


A quem quer pintar o sete
À moda dos alfacinhas
Dá bem mais do que promete
A formosa Mariquinhas


Consta que já reabriu 
A Casa da Mariquinhas
E que tem as amiguinhas 
Mais lindas que já se viu
Quem o disse, sugeriu 
Que se vá ver na internet
O site dela promete 
Só meiguices e fosquinhas
E diz mais nas entrelinhas 
A quem quer pintar o sete

Será caro mas é bom 
Não vos sei dizer o preço
É este o seu endereço 
Mariquinhas ponto com
Tem mobílias de bom tom 
E discretas tabuínhas
E até vende camisinhas 
Para os encontros brejeiros
Vão lá muitos estrangeiros 
À moda dos alfacinhas

Faz-se em duas ou três linhas 
Uma marcação de amor
E se está muito calor 
Há no tecto as ventoinhas
Quando chega a Mariquinhas 
Com escassa toilette
Logo os corações derrete 
Por ser boa rapariga
Não faltando até quem diga 
Dá bem mais do que promete

O progresso é mesmo assim 
Hoje não há nada inédito
Usa-se o cartão de crédito 
Paga-se antes e no fim
O sabão cheira a jasmim 
E as bebidas são fresquinhas
Se é altiva entre as vizinhas 
Virtuosa não será
Mas virtual se fez já
A formosa Mariquinhas

Canção

Sophia de Mello Breyner / Mário Pacheco
Repertório de Carlos do Carmo


Clara uma canção
Rente à noite calada
Cismo sem atenção
Com a alma velada

A vida encontrei-a 
Tão desencontrada
Embora a lua cheia 
E a noite extasiada

A vida mostrou-se 
Caminho de nada
Embora brilhasse 
Lua sobre a estrada

Como se a beleza 
Da lua ou do mar
Nada mais dissesse 
Que o próprio brilhar

Por esta razão 
Sem riso nem pranto
Neste sem sentido 
Se rompe o encanto

Estou bem

Capicua / Ricardo Cruz
Repertório de Inês de Vasconcellos


Fiz a cama de lavado
E com papel perfumado 
Forrei a minha gaveta
Duas gotas de lavanda
E sentei-me na varanda 
A beber um chá de menta

O gato deitado no colo
Ouço Coltrane num solo
A tocar no gira-discos
Olho a cidade serena
Que até parece pequena 
No sossego dos chuviscos

Estou bem
Assim sem ninguém
Tão bem
Sabe tão bem saber 
Estar em solidão
Como também
Quando a companhia vem
Estou bem
Sabendo bem 
Saborear a confusão

A sala silenciosa
Parece estar ansiosa 
Que retorne o frenesim
Mas eu aproveito o tempo
Faço render o momento 
De ter espaço só pra mim

Aconchego-me na manta
Abro um livro, mas às tantas 
Vou deixando o sono ler 
Quando uma mão pequenina
Me acorda com uma festinha 
E a casa volta a encher

Jogo do lenço

José Saramago / Joaquim Campos *fado puxavante estilado*
Repertório de Carlos do Carmo


Trago no bolso do peito
Um lenço de seda fina
Dobrado de certo jeito
Não sei quem tanto lhe ensina
Que quanto faz, é bem feito

Acena nas despedidas
Quando a voz já lá não chega
Por distâncias desmedidas
Depois no bolso aconchega
As saudades permitidas

Nunca mais chegava ao fim
Se as graças todas dissesse
Deste meu lenço e de mim
Mas uma coisa acontece
De que não sei porque sim

Quando os meus olhos molhados
Pedem auxílio do lenço
São pedidos escusados
E é bem por isso que penso
Que os meus olhos, se molhados
Só se enxugam no teu lenço

Fado das amarguras

Vasco Graça Moura / Rogério Charraz
Repertório de Inês de Vasconcellos


Meu amor, se me és o mundo
Nestas minhas desventuras

Podes ver quanto me afundo
No lodo das amarguras
No lodo das amarguras


Não posso viver contente
De meu próprio natural
O meu bem corre-me mal
E o meu mal é recorrente;
Mas a mim infelizmente
Parece que mais abundo
Em tristezas num segundo
Do que os mais em toda a vida;
És a história repetida
Meu amor, se me és o mundo

Eu dei, tu deste, nós demos
Um ao outro a vida acesa
Tinha a força da represa
Darmos tudo o que pudemos;
E as palavras que dissemos
De paixão e ardente juras
Os afagos, as ternuras
Tudo isso agora parece;
Que não trava o que acontece
Nestas minhas desventuras

Canção de vida

Letra e música de Jorge Palma
Repertório de Carlos do Carmo


Nascemos tão furiosamente sábios
Dispensamos a razão
Corremos com sorrisos nos lábios
De encontro ao mundo em contramão

Crescemos descortinando o nosso fado
Desvendando a nossa voz
Mantemos bem-acondicionado
O fugitivo que há em nós

E tu, tu que nem sempre me entendes
Mas que tão bem sabes aconchegar
Aquele que eu sou
Talvez num breve instante, ao olhares-me
Consigas simplesmente, sem pudor
Rever-te em mim


Às vezes nada nos pode causar medo
Tudo corre de feição
Revezes também constam no enredo
Pois não há bela sem senão

Mais tarde valorizamos a inocência
E o que dela resta em nós
Mais tarde temos plena consciência
De que o final é sempre a sós

Ao correr da pele

Letra e música de Amélia Muge
Repertório de Nathalie Pires


O meu amor tem a pele tão macia
A sede nele não tem valia
O meu amor é um cravo de rosa ao peito
Aroma escravo com que me enfeito

Só mais uma coisa vos digo
Já muito em segredo
Ao brincar comigo
Pega num pião
Feito do meu coração
E gira com ele sem medo


O meu amor se está brando é uma lentura
Nada falando pela ternura
O meu amor parece de veludo
Eu faço dele o meu sobretudo

O meu amor tem a pele tão macia
O meu amor é um cravo de rosa ao peito
O meu amor se está brando é uma lentura
Parece de veludo
Eu faço dele o meu sobretudo

O olhar e a morte

António Calém / Miguel Ramos *fado alberto*
Repertório de João Braga


Há olhares que matam sem viver
Eu vi um dia alguém à luz da lua
E nesse alguém eu senti-me anoitecer
E nessa voz ainda ouvi: sou tua

Depois, veio outra noite e outra vida
Unidos num só corpo e tão distantes
Que mais parecia a sombra dolorida
Da luz do sol que então éramos dantes

Mas hoje nada resta do que fomos
Morreu a esperança vã de te sonhar
Em mim ficaram apenas os meus sonhos
E o nada que ficou em teu lugar

Fado em amor perfeito

João Barge / Pedro Moreira
Repertório de Nathalie Pires


Meu amor, amor em chamas
Feito de noite e de lume
Coração onde derramas
Toda a cor do teu perfume

Meu amor, amor amante 
Amor de perdas e danos
Eterno como o instante 
De nós termos vinte anos

Meu amor, amor liberto 
Feito de sal e luar
Mora tão longe ou tão perto 
Do que tens para me dar

Meu amor, amor perfeito 
Preso na cor das cerejas
Não cabe dentro do peito 
Por saber que me desejas

Meu amor, amor inteiro 
Cheio de luz e de sombra
Vai num olhar derradeiro 
Vem nos olhos de uma pomba

Cântico negro

José Régio

“Vem por aqui”
Dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços
E seguros de que seria bom que eu os ouvisse 
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos
Há, nos olhos meus, ironias e cansaços
E cruzo os braços, e nunca vou por ali

A minha glória é esta: criar desumanidade
Não acompanhar ninguém
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí!
Só vou por onde me levam meus próprios passos
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos
Redemoinhar aos ventos como farrapos
Arrastar os pés sangrentos, a ir por aí...

Se vim ao mundo
Foi só para desflorar florestas virgens
E desenhar meus próprios pés 
Na areia inexplorada
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós 
Que me dareis impulsos
Ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?

Corre, nas vossas veias
Sangue velho dos avós
E vós amais o que é fácil
Eu amo o longe e a miragem
Amo os abismos
As torrentes, os desertos

Ide!... 
Tendes estradas, tendes jardins
Tendes canteiros, tendes pátria
Tendes tetos, e tendes regras
E tratados, e filósofos, e sábios
Eu tenho a minha loucura
Levanto-a, como um facho
A arder na noite escura
E sinto espuma, e sangue
E cânticos nos lábios

Deus e o Diabo é que guiam
Mais ninguém
Todos tiveram pai
Todos tiveram mãe
Mas eu, que nunca principio nem acabo
Nasci do amor que há 
Entre Deus e o Diabo

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções
Ninguém me peça definições
Ninguém me diga: "vem por aqui"

A minha vida é um vendaval que se soltou
É uma onda que se alevantou
É um átomo a mais que se animou
Não sei por onde vou, não sei para onde vou
Sei que não vou por aí

Amor incurável

Telmo Pires / Armando Machado *fado súplica*
Repertório de Nathalie Pires


Voltaste e eu caí na tentação
De sentir dos teus braços, o calor
Voltei a enganar meu coração
Sabendo-te incapaz de dar amor

Essa força que me atrai e me fascina
Impossível resistir ao teu olhar
É loucura esta paixão que me domina
Sentimentos que não posso controlar

E depois de fazer-nos tanto mal
Ferir-nos, uma outra e outra vez
Parece ser mas não, não é normal
Perdemos toda a nossa lucidez

Este amor é um mal que não tem cura
É doença que aumenta sem parar
Dois loucos que perdidos na loucura
Encontram mil razões para sonhar

Eu tenho tanta pena… pai

Letra e música de José Gonçalez
Repertório de José Gonçalez


Eu tenho tanta pena
Que não possas ‘star comigo
Agora que o presente se desenha
Sobre o meu passado antigo

Eu tenho tanta pena
Dessas coisas do destino
Quando a história é a resenha
Dum homem que foi menino

Mas eu tenho é a vontade 
De te poder dar a mão
Dar um murro na saudade 
Que me prende à solidão;
Quero abrir uma janela 
E deixar o sol entrar
E pintar uma aguarela 
Onde tu possas morar;
E depois dou-te umas asas
P’ra que tu possas voar

Eu tenho tanta pena
De não ‘stares aqui agora
Quando a vida me acena
Com os meus sonhos de outrora

Eu tenho tanta pena
De tudo o que já lá vai
Da tua voz amena
De poder chamar-te pai

Soledad

Cecília Meireles / Alain Oulman
Repertório de Amália


Soledad… antes que o sol se vá
Como um pássaro perdido
Também te direi adeus
Soledad, soledad
Também te direi adeus

Terra… terra morrendo de fome
Pedras secas, folhas bravas
Ai quem te pôs esse nome
Soledad, soledad
Sabia o que são palavras

Antes que o sol se vá
Como um sonho de agonia
Cairás dos olhos meus, Soledad

Indiazinha… indiazinha tão sentada
Na cinza do chão deserta
Que pensas, não pensas nada
Soledad, soledad
Que a vida é toda secreta

Como estrela… 
Como estrela nestas cinzas
Antes que o sol se vá
Nem depois não virá Deus
Soledad, soledad
Nem depois não virá Deus

Pois só ele explicaria
A quem teu destino serve
Sem mágoa nem alegria
Um coração tão breve
Também te direi adeus, Soledad

Lisboa

Letra e música de João Paulo Esteves da Silva
Repertório de Nathalie Pires


Desespero de acabar
Já não se fala de amor
A neblina da saudade vai mudar de cor
Ficas tão perto do mar
Que o sol já perde o sabor
Cai a noite, não faz mal 
Se ficar ou se me for

Vem, anda correr a cidade
Não há pressa de partir
A estátua da liberdade deixa lá fugir
Não sinto grande vontade de dançar
Vais-te embora tu também

Não há tempo de acabar 
O que acaba no amor
E dói muito esta verdade
Talvez até mais que o fim da dor


Ficas tão perto do mar
Que o sol já perde o sabor
Cai a chuva nos meus ombros
É talvez melhor

Anda correr a cidade,
Não há pressa de partir
A estátua da liberdade deixa lá fugir
Não sinto grande vontade 
De dançar, estar a sorrir
Vais-te embora, vou também

Não há tempo de acabar 
O que acaba no amor
E dói muito esta verdade
Talvez até mais que o fim da dor

A lenda do fado

António Mendes / Franklim Godinho
Repertório de Ana Maurício

Dizem que o fado nasceu
Numa noite triste e fria
Na mais humilde viela
Quando uma estrela do céu
Foi cair na Mouraria
Nos degraus da porta dela

Cota a lenda dessa era
Que esse menino sagrado 
Que veio à terra por bem
Entrou dentro da Severa
Porque ela chamou-lhe fado 
E o fado chamou-lhe mãe

Há quem se atreva a contar
Quando a Severa morreu 
E o deixou na orfandade
O fado pôs-se a chorar
A boa mãe que perdeu 
E assim nasceu a saudade

Por isso é que o fado é triste
Porque chora muitas vezes 
E também nos faz chorar
É porque a tristeza existe
Na alma dos portugueses 
Quando ouve o fado cantar

Gare do Oriente

Amélia Muge / Ricardo Dias
Repertório de Nathalie Pires

Num rendilhar de velas postas
Chamam por mim por todo o mundo
Têm um espelho de água ao fundo
São uma asa aberta ao voo
Do que é partir e regressar

No meio há um mercado
Onde se vendem coisas soltas
Há quem lá passe apreçando a cor
Brilhando na pedrinha
Do cheiro que tem nome de flor

Ao canto há um café aonde tu paraste
E diz o teu olhar a hora de embarcar
Mas não diz quando chegaste

Já bailam as escadas
Sobem os elevadores
Correm sombras e há um vai e vem
São pernas apressando amores

Que foi, o que aconteceu
Alguém procura o que perdeu
E há uma luz que se reflete e bate em cheio
Nesse olhar que é tão passageiro

P’ra lá daquele vidro, do chão assim traçado
Há um atraso, um horário atrasado
O calor diz que fique
Eu sei, chove em Munique

E aqui estou nesta Gare
Que se chama de Oriente
E nela vejo o teu olhar que diz
Que é daqui, dali, ele é qualquer lugar

A lenda do velho Porto

Carlos Bessa / Pedro Rodrigues
Repertório de José Barbosa

Cai um forte nevoeiro
Sobre esta linda cidade
Que deu nome a Portugal
Parece que o céu inteiro
Quer esconder a verdade
Da história medieval

Diz a lenda, que um dia
El-rei D, Pedro, à toa 
Anunciou o noivado
Sem saber o que dizia
Quis que o Porto e Lisboa
 Casassem no seu reinado

Grande cortejo imponente
O Rio Douro subiu 
Barcos do país inteiro
É então que de repente
As portas do céu se abriu 
Caiu forte nevoeiro

O Porto desapareceu
E El-rei viu-se obrigado 
A anular o casamento
Lisboa se entristeceu
Por romperem seu noivado 
Deu entrada num convento

O Porto ficou solteiro
Amante da liberdade 
Deixá-lo ser, não faz mal
Deus lhe deu o nevoeiro
A essa linda cidade 
Que deu nome a Portugal

Diário

Mário Claudio / Ricardo Dias
Repertório de Nathalie Pires


Quer fosse noite, quer dia
Era uma ãnsia, uma espera
E em cada hora batia
Um coração de pantera

O desfraldado desejo
A sede da maresia
Passavam de beijo a beijo
A chama que nos unia

Morria num sobressalto
As terras da promissão
E as águias pairavam alto
Além dos dedos da mão

Fique de nós o abraço
Ao que perdemos de vista
Não há tempo nem espaço
Não há raiz que persista

Que estranha vida

Vitor de Deus / Arménio de Melo
Repertório de Luís Caeiro


Que estranha forma tenho de viver
Sem nada à minha volta, em solidão
Um misto de te querer e te perder
Ciúmes a jorrar do coração;
Sem nada à minha volta, em solidão
Que estranha forma tenho de viver

Que estranha noite longa, em tempestade
Amor, desejos loucos, alimento
E quando caio em mim sem liberdade
Ao teu corpo e em teus braços me acorrento;
Amor, desejos loucos, alimento
Que estranha noite longa, em tempestade

Vem possuír-me, amor, em cada instante
Afaga meus cabelos, dá-me carinhos
Vem ser minha mulher e minha amante
Se o vento soprar contra, revoltado;
Conduz a minha vida p’los caminhos
Até que o meu amor fique calado

Noiva do teu olhar

João Barge / Pedro Moreira
Repertório de Nathalie Pires


Quero ser a tua casa
Quero dar-te a minha mão
Eu preciso de outra asa
Para assim me erguer do chão

Hei-de abrir-te a minha cama 
E arder no teu abraço
E à noite quem nos ama 
Não sabe a cor do cansaço

Hei-de acordar a teu lado 
Ser noiva do teu olhar
Molhar de luz este fado 
Como se fosse rezar

Nem toda a luz me cativa 
Nem toda a tristeza passa
Eu sou flor em carne viva 
Que o vento de leve abraça

Canção de Alcântara

Letra de José Galhardo, Lourenço Rodrigues e Carvalho Mourão
Música de Raúl Ferrão
Versão do Repertório de Lídia Ribeiro
Criação de Margarida de Almeida na revista *Fado Liró*
Teatro Variedades, 1928
Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Canção*

Ó linda Alcântara
Junto à qual o velho Tejo
Reza sempre dia e noite, uma oração
Como eu gostava 
Que coubesses só num beijo
Como cabes toda inteira, no coração

Bairro modesto 
De modestos pescadores
Onde o povo sabe rir e padecer
A minha mãe
A luz do sol e os meus amores
Em Alcântara tudo eu vim a conhecer

Não há bairro de Lisboa mais lindo
Do que aquele onde eu ganho 
O pão para comer
E ali vivo, ora triste, ora rindo
Ali fui criança
Ali fui mulher
Eu só queria que no dia em que a morte
O meu pobre corpo 
Viesse buscar
Eu só queria, meu Deus, ter a sorte
De ainda em Alcântara 
Poder me enterrar

Ó lindo bairro 
Que os antigos guerrilheiros
Amarraram ao valor de Portugal
És o cantinho 
Que os valentes marinheiros
Querem todo só p’ra si, a bem ou mal

Quando é noitinha 
E as cantigas fatalistas
Já começam p'las vielas a gemer
É para Alcântara 
Que os últimos fadistas
Vão cantar o triste fado, que vai morrer

Tudo é Portugal

Artur Ribeiro / Ferrer Trindade
Repertório de Artur Ribeiro


Vem ver a terra das mil candeias
Olha esta gente tão diferente e tão feliz
Vem ver a Serra e as aldeias
Verás então porque razão se diz

Aqui é Portugal
Dono e senhor 
Da humildade e do amor
E verás que afinal
Onde quer que haja saudade
Tudo é Portugal


Vem ver quem passa, ouve as cantigas
Olha o encanto deste santo ali em paz
Vem ver a graça das raparigas
E quando alguém não souber bem, dirás

O rei dos outros sóis

Artur Ribeiro / Joaquim Campos *alexandrino*
Repertório de Trio Odemira


Um sol para nós dois num céu de tons risonhos
Sem nuvens a causar mais sombras descabidas
É rei dos outros sóis o sol dos nossos sonhos
Nasce do teu olhar e morre em nossas vidas

Um sol para nós que a nossa vida aquece
E desde que nascemos nos tornou bem diferentes
Um sol para nós dois que vela e não esquece
E andamos tu e eu da sua luz pendentes

Um sol para nós dois a dar-nos confiança
Numa vida melhor onde não há pecado
Juntou-nos e depois com raios de esperança
Formou o nosso amor, deu-nos o mesmo fado

Canção ao Porto

Artur Ribeiro / Jaime Filipe
Repertório de Artur Ribeiro


Esta canção que vou cantar ao Porto
É oração para rezar ao Porto
Tudo o que sou nasceu em ti, minha cidade
E só te dou o meu amor e esta saudade

Aqui nasci, aqui brinquei, meu Porto
E até sofri quando deixei o Porto
És a feliz inspiração da minha vida
Para quem fiz esta canção sentida

Porto velhinho das ruas antigas
E das cantigas pelo São João
Do riso alegre das raparigas
Ó minha terra só coração


Se a noite vem eu canto a sós ao Porto
O mar também canta na voz ao Porto
E ao luar o Douro então fica absorto
A escutar esta canção ao Porto

Quadras de Aleixo

António Aleixo / Júlio Proença *fado puxavante
Repertório de Trio Odemira


O homem sonha acordado 
Sonhando, a vida percorre
E desse sonho doirado 
Só acorda quando morre

Embora me queiras tanto 
Quanto pode o bem-querer
Não me queres tanto quanto 
Te quero sem te dizer

Não digas que me enganaste 
Por ter confiado em ti
Muito mais do que levaste 
Ganhei eu no que aprendei

Só quando sinceramente 
Sentirmos a dor de alguém
Podemos descrever bem 
A mágoa que essa alguém sente

Campo em festa

Francisco Martins / Vitor Rodrigues
Repertório de Francisco Martins *Fado Marialva*


No meu cavalo montado 
Logo que a manhã rompia
Com o Rodrigo e o Ricardo 
O Pietra e o Faria
Por esses campos fora 
No seio do Ribatejo
Calça justa, bota e espora 
Em Arruda ou em Samora
Da Chamusca ao Alentejo

Com valentia
Toiros vamos apartar
Galhardos na picardia
Garbosos a derribar
E com nobreza
Trazemos no coração
A saudade que está presa
Aos tempos que já lá vão


O Visconde já pingado 
O Palhas na caturreira
O Dentinho desafivelado 
Casquinha à antiga maneira

Passeios e romarias 
Vilaverde, que saudade
Deu-nos grandes alegrias 
Era vê-lo nas picarias
Hoje, dele, só Deus sabe

E depois do sol-posto 
Trinam guitarras de fundo
Dedilhadas com bom gosto 
P’lo Velez e o Edmundo

Marialavas de cartel 
Que cantam o velho fado
O Rodrigo Miguel 
O Xico e o Manel
O Macho e o Pegado