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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.260 LETRAS <> 3.120.500 VISITAS * MARÇO 2024 *

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Fado escravo

Tiago Torres da Silva / Olívia Byington
Repertório de Maria João Quadros


É no silêncio da noite 
Quando o murmúrio do mar
Se transforma num açoite 
Que todos querem escutar
Que a mulher convoca o vento 
E semeia a tempestade
Ensinando o seu lamento 
A transformar-se em saudade

Talvez se escutem poemas
No negror do tombadilho;
As mulheres são mães supremas
Num braço, trazem algemas
No outro, levam um filho

Por cada onda há um homem 
Num remar de tanta idade
Não são as dores que o consomem
Só o consome a saudade
Há um chicote a estalar
E há um navio que avança
Ninguém se atreve a chorar
Ninguém se atreve a ter esperança

Talvez se escutem canções
Na negrura do convés
Os homens calam paixões
Esconderam os corações
Por sob a planta dos pés

Quem são estes desgraçados 
Que invocam os mares do sul
E acabam naufragados 
Na sombra do céu azul?
Que mar este que se acalma 
Em corpos que o sol queimou
Indo a estibordo da alma 
Que nenhum Deus lhe doou

Talvez se escute uma prece
E se ergam olhos aos céus
Em cada corpo se esquece
Um Deus que não o conhece
Um Deus que não quer ser Deus

Eu lembro-me de ti

Linhares Barbosa / Alfredo Duarte
Repertório de Alfredo Marceneiro

Eu lembro-me de ti, chamavas-te saudade
Vivias num moinho, ao cimo dum outeiro
Tamanquinha no pé, lenço posto à vontade
Nesse tempo eras tu, a filha dum moleiro

Eu lembro-me de ti, passavas para a fonte
Pousando num quadril, o cântaro de barro
Imitavas em graça, a cotovia insonte
E mugias o gado, até encheres o tarro

Eu lembro-me de ti, que às vezes a farinha
Vestia-te de branco, e parecias então
Uma virgem gentil, que fosse à capelinha
Num dia de manhã, fazer a comunhão

Eu lembro-me de ti, e fico-me aturdido
Ao ver-te pela rua, em gargalhadas francas
Pretendo confundir, a pele do teu vestido
Com a sedosa lã, das ovelhinhas brancas

Eu lembro-me de ti, ao ver-te num casino
Descarada a fumar, luxuoso cigarro
Fecho os olhos e vejo, o teu busto franzino
Com o avental da cor, e o cântaro de barro

Eu lembro-me de ti, quando no torvelinho
Da dança sensual, passas louca rolando
Eu sonho eu fantasio, e vejo o teu moínho
Que bailava também, ao vento, assobiando

Eu lembro-me de ti, e fico-me a cismar
Que o nome de Lucy, que tens, não é verdade
Que saudades eu tenho, e leio no teu olhar
A saudade que tens, de quando eras saudade

Vais dizer adeus

Tiago Torres da Silva / Chico César
Repertório de Maria João Quadros


Adeus que não vais voltar 
Adeus que não vais fugir
Adeus que não vais olhar
Vais dizer adeus

Não me vais mentir, n
ão te vais zangar
Não me vais sorrir
Vais dizer adeus
Eu não vou gritar, eu não vou ouvir
Eu não vou chorar
Vais dizer adeus
E vou desmentir o que o teu olhar
Teima em repetir

Há palavras que são pergunta e resposta
Há palavras que são silêncio e barulho
Hã palavras que talvez dêem á costa
Quando enfrentam a saudade num mergulho;
Ou quando o fado se encosta ao nosso orgulho

Mas se os teus olhos são meus

E neles encontro abrigo
Mesmo que te diga adeus

Fico contigo

O meu fado

Moreira da Cruz / José António Sabrosa 
Repertório de Beatriz da Conceição 
Este poema aparece gravado pelo Ricardo Ribeiro na música 
do Fado Maria Rita de Armando Machado com o título *
Mas porquê de eu ser assim* 

Mas porquê se eu ser assim 
Porque trago dentro em mim 
Tanta morte e tanta vida
Esta fogueira inconstante 
Ora chama crepitante 
Ora cinza arrefecida 

Quase sempre esta descrença 
Este estado de indiferença 
Pela verdade ultrajada 
E de repente, esta fé 
Esta ânsia de pôr de pé 
Cada ilusão derrubada 

Quase sempre a cobardia 
Com que enterro dia a dia 
Meus velhos sonhos perdidos 
E logo a fúria incontida
Com que esbofeteio a vida 
Quando ela humilha os vencidos 

Ai quem me dera ter paz
Quem me dera ser capaz 
De vos negar minha mão 
Atraiçoar um amigo 
Libertar-me do castigo 
De te sentir meu irmão

Amor alheio

Paulo César Pinheiro / Ivo Lancellotti
Repertório de Maria João Quadros


Tu foste embora e agora o meu coração
É um coração cortado ao meio
Cada metade dele é uma emoção
Numa eu te adoro, noutra eu te odeio

Tu foste embora e agora em mim, que aflição
Custa a conter o meu anseio
Fiquei achando que ia ter teu perdão
Quis tanto ter teu perdão e ele não veio

Tu foste embora meu bem
E eu vivo com receio
É tanto o amor que a gente tem
Que é triste ver que o amor de alguém
Não foi amor, foi devaneio

Tu foste embora de mim
E eu quase ainda não creio
Por isso é que eu fiquei assim
Pois só se crê que o amor tem fim
Quando é o fim do amor alheio

Grãos de areia

António Rocha / Paulo Valentim
Repertório do autor  


Tal como grãos de areia que fugiam
Por entre as minhas mãos escassas de esperança
Assim foram os sonhos que existiam
Nos restos dos meus sonhos de criança

Tal como a ira ou mansidão do vento
Afaga ou põe em fúria, a voz do mar
Também este meu triste pensamento
Recorda o que não queria recordar

Se a vida fosse um mar de brancas rosas
Como os meus velhos sonhos foram já
Não haveria estradas sinuosas
Onde procuro aquilo que não há

Assim numa alegria que é fingida
Eu sou, nesta procura do meu ser
Grão de areia que foge ás mãos da vida
E cai nas mãos da morte p’ra viver


Gota d’água

Letra e musica de Chico Buarque
Repertório de Maria João Quadros


Já te dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue, quando fervia

Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa

Por favor, deixe em paz meu coração
Que ele é um pote, até aqui, de mágoa
E qualquer desatenção
Faça não
Pode ser a gota d’água

Eu hei-de amar uma onda

Tiago Torres da Silva / Francis Hime
Repertório de Maria João Quadros


Eu hei-de amar uma onda
Que de tanto naufragar
Não deixará que eu responda
Aos gritos roucos do mar

Eu hei-de amar uma pedra
Que sentindo-se tão só
Vai fazer tremer a terra
P’ra se desfazer em pó

Não há coração mais puro 
Do que aquele que adivinho
Rente ao chão quando procuro 
O amor do meu caminho
Não tem amor mais desejado
Nem paixão mais violenta
Porque eu hei-de amar no fado 
A saudade que ele inventa

Eu hei-de amar uma fonte
Fonte de água tão clara
Que a linha do horizonte
Vai prender-se á minha cara

Eu hei-de amar uma rosa
Que ao saber-me sua amante
Irá nascer tão viçosa
Que murcha no mesmo instante

Derrocada

Fernando Farinha / Renato Varela *fado varela*
Repertório de Fernando Farinha


Onde estão os amigos que diziam
Ter por mim, amizade inabalável
Para quem eu, sem ver que me mentiam
Fui amigo sincero e fui prestável

Onde estão os patrões que disputavam
A troco de dinheiro, o meu valor
E que quando na rua me encontravam
Minhas mãos apertavem com calor

Onde estão os colegas verdadeiros
Por quem eu era sempre acompanhado
Aqueles meus antigos companheiros
Que adoravam andar sempre a meu lado

O velho artista, após ter-me contado
Da sua fama e glória, o triste fim
Despediu-se tristonho e apressado
Talvez p’ra não chorar ao pé de mim

E eu que compreendi o valor forte
Desta verdade amarga e tão atroz
Pensei no que será a minha sorte
Se algum dia perder a minha voz

Quando a noite adormece

Tiago Torres da Silva / Ivan Lins
Repertório de Maria João Quadros

Gosto das tuas risadas
Da cor que os teus olhos ganham ao sorrir
Abrindo manhãs, desenhando estradas
Por onde os meus passos se atrevem a ir

Palavras e vozes e gestos
Me trazem memórias que falam de ti
E me dão o que eu sempre sonhei
Mas nunca pedi

Gosto das ondas quebradas
Nas praias que a lua quer iluminar
Em busca dos corpos, das juras salgadas
Dos beijos que as bocas roubaram ao mar

Palavras e vozes e gestos
Me trazem memórias que falam de ti
E eu invento o que sempre pensei
Mas nunca entendi

É como se eu soubesse 
Porque que a saudade vem
Quando a noite adormece 
Nas mãos de alguém
É como se eu esperasse 
Que o teu olhar sorria
E só depois deixasse 
Nascer o dia

Gosto de histórias guardadas
Nas arcas que o tempo não pôde fechar
Beijando demónios, enrolando fadas
Ás teias de aranha que eu soube bordar

Trapos e horas e chaves
Me trazem memórias que falam de ti
E eu murmuro o que sempre calei
Mas nunca esqueci

Gente vulgar

Tiago Torres da Silva / Alzira Espíndola
Repertório de Maria João Quadros


Sei que o fado só tem voz 
Entre gente como nós
Gente vulgar
E que o fado é uma cantiga 
Que só abriga
Gente vulgar
Sei que o fado aconteceu 
Entre gente como eu
Gente vulgar
E que ele só se demora 
Nas ruas aonde mora
Gente vulgar

O fado não tem peneiras 
Nem a mania que é chique
Se o trancam nas Amoreiras 
Foge p’ra Campo de Ourique

O fado não se governa 
Com fidalgos e burgueses
Prefere andar na taverna
 E beber demais, ás vezes

O fado não tem rotina 
Nem hora p’ra recolher
Adormece em cada esquina 
Nos braços duma mulher

O fado não usa aigrettes 
Nem gosta de pôr gravata
E nunca o vi fazer fretes 
Nem andar com gente chata

O fado não tem vaidade 
E se o prendem num salão
Ele morre de saudade 
Da Rua do Capelão

O fado nunca socorre 
A quem cantando o maltrata
Pois por um fado que morre 
Há sempre um fado que mata

Fado mulato

Tiago Torres da Silva / Zeca Baleiro
Repertório de Maria João Quadros


Uma jangada perdida 
Chega a um porto qualquer
Vem quebrada, vem sumida 
Traz a fome adormecida
No ventre duma mulher

Ouvem-se ao longe tambores 
Há uma lua que brilha
Bebendo a seiva das flores 
A mulher morre de amores
Pela voz daquela ilha

Fado mulato... 
Fado que ao nascer do dia
Traz o perfume do mato
Agarrado á melodia
Fado que embala
Um sono que sem aviso
Descobre a voz da sanzala
No sonho do seu sorriso

Aquela mulher perdida 
Encontra um homem qualquer
E ao dar-lhe a sua vida 
Ela fica mais perdida
Não lhe dando o que ele quer

Ao longe o vento que passa 
Não sabe dar testemunho
De ver nascer uma raça 
Onde Dezembro se enlaça
Ás tardes calmas de Junho

Mais uma bala perdida 
Trespassa um corpo qualquer
E há uma pátria que vencida 
Tenta estancar a ferida
Com o que a terra lhe der

A terra dá-lhe suspiros 
E a terra dá-lhe canções
Vazam-se as noites com tiros 
Rasgam-se as almas com vírus
Que matam mais que canhões

Uma guitarra perdida 
Dedilha um fado qualquer
Levanta a voz destemida 
E diz que por estar vencida
Não deixou de ser mulher

Se alguém souber, que me explique
Como é que um perfume chora
Mas mesmo que aqui não fique 
Hei-de levar Moçambique
Pela minha vida fora

Noites perdidas

Tiago Torres da Silva / Pedro Luís 
Repertório de Maria João Quadros 

Sempre soube que a saudade 
Se apaixonara por mim
E que sentia vaidade 
Por me ver sofrer assim 

Eu dei-me a essa paixão 
Na tristeza de um noivado
Onde entrego á solidão 
Tudo o que me deu o fado 

Aprendi a dar o braço 
À madrugada mais estreita 
Porque a dor acerta o passo
Pelas mãos de quem aceita;
Que é vendo o nosso cansaço 
Que a saudade se aproveita 
P’ra desfazer o compasso 
Com que o nosso amor se deita 

Sempre soube que as guitarras 
Gostavam de ser tangidas 
Só p’ra deitarem as garras 
Às minhas noites perdidas 

Mas as saudades são vãs 
Quando dormem a meu lado 
Porque eu acordo as manhãs 
P’ra virem ouvir o fado 

Sempre soube a solidão 
Pois deixei a alma enxuta
Ao chorar por tradição 
P’ra dar prazer a quem me escuta

Foi ouvindo o que soubeste 
Que o teu fado me procura
Porque o xaile que me déste 
É feito de noite escura

Caravela

Carlos Barrela / Mário Pacheco
Repertório de Nuno da Camara Pereira

Tu foste meu país, a caravela
Andámos todos nós no alto mar
Por ti rasgamos medos com as velas
Que a nossa solidão soube inventar

Fomos além, mais além que o além
Fomos bandeiras nos mapas de outros tempos
Com a cor do céu azul que ninguém tem
A não ser este país onde nasce o vento

Erguemos fortalezas de esplendor
Espalhámos pelo chão, ouro e canela
E abriu-se em nosso corpo a maior dor
Ao fazerem em filigrana as caravelas

Tu és meu país, a água forte
Á Europa dás conforto final
Vencedor de amarguras e de morte
Que de novo se cumpra Portugal

Há fado em mim

*Atalhos proibidos*
Artur Ribeiro / Miguel Ramos *fado alberto*
Repertório de Filipe Duarte


Há fado na minh’alma por ti louca
Neste anseio de choro que m´invade
E que deixa ficar na minha boca
O travo tão amargo da saudade

Há fado nesta lágrima sentida
Que brinca no meu riso amargurado
E vai caír teimosa e dolorida
Pelas notas vadias do meu fado

Há fado se não dormes no meu peito
No tanger das guitarras em quebranto
Há fado no meu canto contrafeito
Se te não vejo aqui, enquanto canto

Há fado, nos meus passos descabidos
Neste bater à porta sempre errada
Quem anda por atalhos proibidos
Pode chegar ao fim e não ter nada

Diz se me conheces

Carlos Barrela / Mário Pacheco
Repertório de Nuno da Câmara Pereira

Diz se me conheces, meu cansado espelho
Rio Tejo tão velho quando a noite desce
Diz se me conheces no caudal das águas
Cantando estas mágoas que o amor me tece

Diz se me conheces
Diz se me conheces

Diz se me conheces, rápido cavalo
Das campinas bravas onde cavalguei
Diz se me conheces quando há no meu fado
Palavras amargas que da vida herdei

Diz se me conheces, português trigueiro
Falso aventureiro que o sol envelhece
Diz se me conheces, menina das tranças
Que quando criança, mil beijos me déste

Diz se me conheces, meu país saudade
Que lavas a aurora com o nevoeiro
Diz se me conheces, ó minha cidade
Se ainda namoras comigo primeiro

Maria Triste

A. Santos / Jaime santos
Repertório de Manuel de Almeida

Vi hoje a Maria triste
Olhar-me com tal tristeza
Que em mim ficou a certeza
Que só tristeza lhe assiste

Ela que tinha a alegria
Que o arrebol põe nos prados
Pôs na minh’alma os cuidados
Dum poente em agonia

Alguém quebrou 
Juras dum amor secreto
Com desprezo por um afeto
Que em segredo se entregou
Hoje consiste
Da Maria já sem esperança
Ter apenas por lembrança
Lembranças dum amor triste

Fado de amor e pecado

João Monge / João Gil
Repertório de Ana Sofia Varela


Parti andorinhas parti
Longe do meu telhado
Os barcos que jazem aqui 
Foram de outro lugar
Quem sabe amor, onde vai

Quem sabe a dor que nos cai
O vento passa por nós 
E o resto é o mar

Matei a rosa vermelha 
Que usava ao decote
Tingi os lençóis com a raiva 
De amor e pecado
Olhai as mãos, meu amor

Olhai meus olhos, senhor
Cantai guitarras cantai 
A tristeza do fado

Adeus amor que matei
O mar que há-de encontrar 
O nosso coração
Adeus amor que jurei
Minha rosa de fogo e de paixão

Fui carne de amor e ciúme
Fui vinho e loucura
Um cravo em botão, meu amor
Preso à tua lapela
Chorei, amor, este fim

Sequei por dentro de mim
Deixei uma rosa vermelha 
À tua janela

Tracei o meu xaile no rosto
É de luto este fado
Lavei o teu sangue na chuva 
Que lava a saudade
Olhai as mãos, meu amor

Olhai meus olhos, senhor
Cantai guitarras
Cantai a minha liberdade

Sei que me viste passar

João Monge / João Gil
Repertório de Ana Sofia Varela 


Sei que me viste passar e disfarçaste
Eu fingi que passei sem dar por ti
Desviaste o olhar mas sei que olhaste
Porque me encandeei quando te vi

Sonhei dias a fio fazer-te adeus
Viraste os olhos à lua para não dar azo
Se alguém disser que me viu, juro por Deus
Que passei á tua rua só por acaso

Senti o teu olhar nas minhas costas
Sei o bem que me faz ao coração
Gosto de te cruzar, tu também gostas
E um dia não és capaz de fingir que não

A minha canção é saudade

Vaz Fernandes / Frederico de Brito *fado britinho*
Repertório de Amália  


De ilusões desvanecidas
Filme de esperanças perdidas
Minha canção é saudade
Em que de tranças caídas

Via tudo em cores garridas
E em todos via bondade

E nesta sinceridade

De amor e sensualidade 
Ponho a alma ao coração
Numa angústia, uma ansiedade

Minha canção é saudade 
Do amor sonhado em vão

Nesta saudade sem fim

Choro saudades de mim
Sou mulher mas fui pequena
Também brinquei e corri

Mas quem sabe se sofri
Se é de mim que tenho pena

Franjas de ternura

Sílvia Filipe / Luís Alexandre
Repertório de Sílvia Filipe

Teu beijo é veludo que enternece
Minha boca sedenta de carinho
A tua voz, frescura, puro linho
Teu abraço, manto de lã que me aquece

Sem ti sou tela crua e vazia
Quadro em branco, ainda por pintar
Farrapo de cetim em cama fria
Lençol sem ninguém p’ra aconchegar

Juntos, inventámos seda pura
Num enleio de amor feito bordado
Nossas mãos são as franjas da ternura
No xaile que abriga o nosso fado

A rua do silêncio

António Sousa Freitas / Joaquim Campos *fado alexandrino*
Repertório de Carlos do Carmo


Na rua do silêncio é tudo mais ausente
Até foge o luar e até a vida é pranto
Não há juras de amor, não há quem nos lamente
E o sol quando lá vai é p’ra deitar quebranto

Na rua do silêncio o fado é mais sombrio
E as sombras duma flor não cabem lá também
A rua tem destino e o seu destino frio
Não tem sentido algum, não passa lá ninguém

Na rua do silêncio as portas 'stão fechadas
E até o sonho cai, sem fé e sem ternura
Na rua do silêncio há lágrimas cansadas
Na rua do silêncio é sempre noite escura

Quem sente muito cala

Fernando Pessoa / Popular
Repertório de Sílvia Filipe


O amor, quando se revela
Não se sabe revelar
Sabe bem olhar p’ra ele
Mas não lhe sabe falar

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer
Fala: parece que mente 
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ele adivinhasse 
Se pudesse ouvir o olhar
E se um olhar lhe bastasse 
P’ra saber que a estão a amar

Mas quem sente muito, cala 
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala 
Fica só, inteiramente

Sem razão

Fernando Farinha / Alberto Correia
Repertório de Amália

Meu amor
Não me perguntes o motivo
Da paixão que me tortura
A verdadeira paixão 
Não tem razão
Nem se procura
É desgosto ou felicidade
Que chega em qualquer altura

Por que gostei de ti, não sei
Pois nada fiz p’ra que te queira
Se o amor se perdeu
Que culpa tenho eu 
De querer-te desta maneira

O amor não anda às ordens 
De ninguém
Aparece de surpresa
Só sei que assim que te vi
Olhei p’ra ti e fiquei presa
Neste mundo ninguém sabe
Do amor a natureza

Ninguém sabe onde mora a sorte
Nem se adivinha o mal castigo
O amor, quando vem
Não sabemos também 
A sorte que traz consigo

Meu país guerreiro e mareante

Maria Manuel Cid / Custódio Castelo
Repertório de António Pelarigo


Ó meu país guerreiro e mareante
Ó meu país de montes e trigais
Descasa nos meus braços um instante
E diz-me por favor aonde vais

Ó meu país que o tempo naufragou
Na praia lusitana do meu berço
Destroço duma nau que navegou
Ao largo desse mar que não conheço

A força do teu braço, diz a história
Um dia voltará como renovo
Há oitocentos anos duma glória
Correndo pelas veias do teu povo

O teu corpo cansado está doente
O tempo p’ra viver não é demais
Pára de rir assim, tão doidamente
E diz-me por favor, aonde vais

Mar de fado

Sílvia Filipe / Marino de Freitas
Repertório de Sílvia Filipe


Num mar picado, o vento forte
Trouxe-me o frio sem aviso
Meu fado não tivera melhor sorte
Quisera em minh’alma um sorriso

Fui grão de areia em praia vazia

Num mar salgado, vaga de medo
No frio que o vento trazia

Guardava o meu fado em segredo

Fui maré cheia, cheia de nada

Maré vazia de tudo
Onda parada, um canto mudo

Num mar imenso de alma salgada

Num mar de fado a doce bruma

Trouxe-me a esperança em maré cheia
Fui quebrando as mágoas uma a uma

Soltei o medo dançando na areia

Na melodia que hoje canto

Choro esse frio que não guardo
Não fecho o segredo, nem meu pranto

Sou vaga, mas feliz, num mar de fado

Sou maré cheia, cheia de vida
Maré vazia, vazia de lamento
Dor esquecida, esquecida no tempo
Sou feliz num mar de fado

Adeus

José Galhardo / Raúl Ferrão
Repertório de Ana Laíns

Meu amor na vida
Sem vida eu fico aqui
Desde que à partida
Meu bem, fiquei sem ti
Bem peço aos retratos socorro
São mudos, ingratos
Vem tu, se não morro

Nem mesmo a saudade 
Me traz consolação
Quero uma verdade
Não quero uma ilusão
Na alma ainda me dói, meiga a tua voz
Quando o barco foi tão mau p’ra nós

Adeus
Não afastes os teus olhos dos meus
Até quando ao longe a bruma 
A pairar se consuma 
Entre as ondas do mar e os céus
Adeus
Não afastes os teus olhos meus
Dá-lhes carinhos
Que partem ceguinhos de amor
Pelos teus

Sei que tu existes 
E sei também, meu Zé
Que há palavras tristes
E que uma delas é
A que me tortura, a distância
Não sei se há mais dura 
Na minha ignorância

Há palavras belas
Mas quase as esqueci
Véu, noivado, estrelas
Altar, e outras pr’aí
Quando as ouvirei todas sol, Jesus
Hoje apenas sei estas sem luz

Não sou nascida do fado

Ana Laíns / Reynaldo Varela *fado meia noite*
Repertório de Ana Laíns


Não sou nascida do fado
Nasci do mundo e da vida
De uma memória perdida
De um tempo certo e errado

Não sou nascida do fado 
Nasci do pouco e do tanto
Da terra e do mar salgado 
Do amor, da dor e do pranto

Não sou nascida do fado 
Nasci do canto do vento
No encanto de um momento 
De um destino não destinado

E se eu não nasci do fado 
Nem da saudade de alguém
Se o fado me foi negado 
Eu não nasci de ninguém

Fado do miradouro

Ary dos Santos / Alfredo Duarte *fado versículo*
Repertório de José Manuel Osório


Do alto do miradouro / da cidade
Com olhos molhados vejo / o que eu adoro
De cabelos cor de ouro / mocidade
Da Lisboa mira tejo / onde eu moro

Da Lisboa mira mágoa / onde eu penso
Com a chita dos telhados / a cobrir
Descosida á beira água / o rio imenso
Em vestidos já cansados / de vestir

De Lisboa mira dor / mas feita gente
Aberta blusa de vento / marinheiro
Talhada em fado menor / amargamente
Caseada a sofrimento / verdadeiro

De Lisboa mira céu / incendiada
No azul da madrugada / que nasceu
De Lisboa que sou eu / apaixonada
Mulher do povo sem nada / que se ergueu

De Lisboa mira espaço / sem limite
Abrindo cada janela / á liberdade
Para que á força do braço / não hesite
E o fumo seja dela / de verdade

Em Lisboa mira Abril / que é primavera
Mesmo no fado menor / que tanto dói
Somos muitos, muitos mil / todos á espera
Duma esperança que é maior / que sempre foi

Desespero

Ary dos Santos / Júlio Proença *fado esmerarldinha*
Repertório de José Manuel Osório

Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci

Não fui eu que te quis e não sou eu
Que hoje te embalo e gemo e canto e gero
Possesso desta raiva que me deu
A grande solidão que de ti espero

E à sombra da mágoa é que te vejo
E à sombra do ódio é que te quero
A voz com que te chamo é o desencanto
E a seiva que te dou, o desespero

Olha a ribeirinha

Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves
Repertório de Amália

Olha a ribeirinha
Que sonhou ser rio

Sonho de grandeza 
De ribeira presa
Que vai com certeza 
Deixar de sonhar
Anda ribeirinha 
Corre ligeirinha
Não chores sózinha 
Mais chorou o mar

Olha a ribeirinha
Que é do sonho que ela tinha
De pedra, pedrinha a pedrinha
Vai correndo a ribeirinha

Vi a ribeirinha
Que triste que vinha

Sonhou a ribeira 
Com a terra inteira
A correr ligeira 
Seu sangue gastou
Da mesma maneira 
Sequei eu, ribeira
Da mesma maneira 
Meu sonho secou

Ai a ribeirinha
Que tinha o sonho que eu tinha
Chorando, gotinha a gotinha
Vai secando a ribeirinha

Morrinha

Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves
Repertório de Amália


Ai, sonhos, pranto, rios, poço, corpo
De lírio e hortelã agreste
São sonho que morre, são água que corre
Que da minha sede bebeste

Na minha cama há um lençol de linho

Que hoje é como eu, sózinho
A sua brancura, a minha ternura
São minha loucura, meu espinho

Na minha solidão, que é toda minha

Na minha solidão, sózinha
Tristeza em botão que eu guardo na mão
Crescendo, crescendo, morrinha

Flor de lua

Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves
Repertório de Amália


Solidão, campo aberto 
Campo chão, tão deserto
Meu verão, ansiedade 
Meu irmão, de saudade

Campo sol, girassol, branco lírio
Ilusão, solidão, meu martírio
Torna a flor, minha flor, campo chão
Torna a dor, minha dor, solidão

Vai no vento a passar 
Um lamento a gritar
Dó ré mi, mi fá sol 
Dó ré mi, Girassol

Velho cardo, esguio nardo, flor de lua
Mi fá sol, Girassol, eu sou tua
Torna a dor, minha flor, campo chão
Torna a dor, minha flor, solidão

Grita o mar, geme o vento 
Teu olhar, meu tormento
Chora a lua, flor dourada 
Madressilva, madrugada

Canta a lua, semi-nua, flor mimosa
Sargaçal, roseiral, minha rosa
Chora a fonte, reza o monte, branca asa
Canta a flor, chora a flor, campa rasa

Fado manguela

Ary dos Santos / José Mário Branco 
Repertório de Carlos do Carmo 

O Porto é porta do meu rio 
Douro-viagem, Douro-casario 
Ganhei-o e perdi-o na ponte desafio
 
Água de barro correndo 
Lavando o corpo do Barredo 
Mágoa que foste crescendo 
Numa cidade sem medo 

No gosto do meu sarrabulho 
Eu fiz das tripas coração
E depois comi barulho 
Só por ter dito que não

O Porto não é só Ribeira
É Miragaia, Bessa, Fontaínhas 
Mas tem esta maneira 
De as ruas serem minhas 

Parto de um rio de vinho aportado 
Há quanto tempo estás ancorado 
Ai!... não te esqueças do mar a teu lado 
Porto dormido, Porto acordado;
Porto perdido mas encontrado

Agora sim, sei da ternura
Que tu me dás em cada palavrão
Tão verde e tão madura
Alho-porro, São João

Alma de um rio às portas do mar 
Foz dos meus olhos, grandes janelas
Onde se põe a tristeza a secar
Roupas de dentro, coisas singelas
Na corda bamba dos teus manguelas

O Porto não é só Ribeira
É Miragaia, Bessa, Fontaínhas
Mas tem essa maneira 
De jogar ás fintinhas

Canção de madrugar

Ary dos Santos / Nuno Nazareth Fernandes
Versão de Carlos do Carmo
Interpretada por Hugo Maia de Loureiro no Festival RTP 1970 

De linho te vesti
De nardos te enfeitei
Amor que nunca vi... mas sei

Sei dos teus olhos acesos na noite
Sinais de bem despertar
Sei dos teus braços abertos a todos 
Que morrem devagar
Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo há-de acender
Uma fogueira de sol e de fúria 
Que nos verá nascer

Irei beber em ti 
O vinho que pisei
O fel do que sofri... e dei

Dei do meu corpo um chicote de força
Rasei meus olhos com água
Dei do meu sangue uma espada de raiva 
E uma lança de mágoa
Dei do meu sonho uma corda de insónias
Cravei meus braços com setas
Descobri rosas alarguei cidades
E construí poetas

E nunca te encontrei 
Na estrada do que fiz
Amor que não logrei... mas quis

Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo há-de acender
Uma fogueira de sol e de fúria 
Que nos verá nascer

E então:
Nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem
Pedras, nem facas, nem fomes nem secas nem 
Feras, nem ferros nem farpas nem farsas, nem
Forcas, nem cardos, nem dardos, nem terras, nem
Choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem
Pedras, nem facas, nem fomes nem secas nem
Feras, nem ferros nem farpas nem farsas, nem mal

Fado da saudade

José Galhardo / Frederico Valério
Repertório de Amália Rodrigues

Eu canto o fado p’ra mim
Abre-me as portas que dão
Do coração cá p'ra fora
E a minha dor sem ter fim
Que está naquela prisão
Sai da prisão, vai-se embora 

Oh minha dor... 
Sem o amargo do teu pranto
Não cantava como canto
No meu canto amargurado
Oh meu amor... 
Que és a dôr que eu sofro e choro
Afinal, oh dôr que adoro
É por ti que eu canto fado 

Eu canto o fado p'ra mim 
Já o cantei p'ra nós dois
Mas isso foi no passado
Já que assim é, seja assim
Já me esqueceste depois
Já cada qual tem seu fado

O mais feliz 
É o teu, tenho a certeza
É o fado da pobreza 
Que nos leva à felicidade
Se Deus o quis
Não te invejo essa conquista
Porque o meu é mais fadista
É o fado da saudade

Reviver o passado

Manuel Rodrigues de Sá Esteves / João do Carmo Noronha *fado pechincha
Repertório de Carlos Zel


Fui reviver o passado
Às ruas da Mouraria
Não vi fadistas nem fado
Desde a Graça até á Guia

O casario se aninha 
Cheio de fé e virtude
Em volta da capelinha 
Da Senhora da Saúde

Foi ali, onde a Severa 
Cantou o fado e viveu
Mas o fado dessa era 
Morreu quando ela morreu

E da velha tradição 
Já pouco resta, hoje em dia
Esses tempos que lá vão 
Não voltam à Mouraria

Meu amigo está longe

Ary dos Santos / Alain Oulman 
Repertório de Amália 

Nem um poema, nem um verso, nem um canto
Tudo raso de ausência, tudo liso de espanto
Amiga, noiva, mãe, irmã, amante
Meu amigo está longe
E a distância é tão grande

Nem um som, nem um grito, nem um ai
Tudo calado, todos sem mãe nem pai
Amiga, noiva, mãe, irmã, amante

Meu amigo está longe
E a tristeza é tão grande

Ai esta mágoa, ai este pranto, ai esta dor
Dor do amor sózinho, o amor maior
Amiga, noiva, mãe, irmã, amante

Meu amigo está longe
E a saudade é tão grande

Fado mudo

Tiago Torres da Silva / Lara Rennó
Repertório de Maria João Quadros

Se eu não puder encontrar
Um motivo p’ra cantar
Ponho o meu xaile de lado
Mas no silêncio que sinto
Não sei choro, se minto
Pelas saudades do fado

Quando a tristeza vai alta
O fado não me faz falta 
Mas é ele que em mim chora
E quando o fado acontece
A tristeza então parece 
Que vem, mas não se demora

Se eu esquecer as melodias
Os cravos, os mourarias 
Vê a luz do meu olhar
Que mesmo estando calado
No seu silêncio há mais fado 
Do que a dor te pode dar

Não sei se o fado se espanta
De eu calar o que eu mim canta 
Quando a tristeza persiste
O que eu sei é que, talvez
Dentro da minha nudez 
Há um fado ainda mais triste

Tourada

HOMENAGEM AO POETA
Ary dos Santos / Fernando Tordo
Fernando Tordo no Festival da RTP de 1973 - 1°lugar


Não importa sol ou sombra
Camarotes ou barreiras
Toureamos ombro a ombro as feras
Ninguém nos leva ao engano
Toureamos mano a mano
Só nos podem causar dano, esperas

Entram guizos chocas e capotes 
E mantilhas pretas
Entram espadas chifres e derrotes 
E alguns poetas
Entram bravos cravos e dichotes
Porque tudo o mais são tretas

Entram vacas depois dos forcados 
Que não pegam nada
Soam brados e olés dos nabos 
Que não pagam nada
E só ficam os peões de brega
Cuja profissão não pega

Com bandarilhas de esperança 
Afugentamos a fera
Estamos na praça da Primavera
Nós vamos pegar o mundo 
Pelos cornos da desgraça
E fazermos da tristeza, graça

Entram velhas doidas e turistas
Entram excursões
Entram benefícios e cronistas
Entram aldrabões
Entram marialvas e coristas
Entram galifões de crista

Entram cavaleiros à garupa 
Do seu heroísmo
Entra aquela música maluca 
Do passodoblismo
Entra a aficionada e a caduca
Mais o snobismo... e cismo

Entram empresários moralistas
Entram frustrações
Entram antiquários e fadistas 
E contradições
E entra muito dólar muita gente
Que dá lucro as milhões

E diz o inteligente
Que acabaram as canções

Desfolhada

Ary dos Santos / Nuno Nazareth Fernandes
Interpretado por Simone de Oliveira 
Festival RTP 1969 - 1°lugar

Corpo de linho, lábios de mosto
Meu corpo lindo, meu fogo posto
Eira de milho, luar de Agosto
Quem faz um filho fá-lo por gosto

É milho-rei, milho vermelho
Cravo de carne, bago de amor
Filho de um rei que sendo velho
Volta a nascer quando há calor

Minha palavra 
Dita à luz do sol nascente
Meu madrigal de madrugada
Amor amor amor amor 
Amor presente
Em cada espiga desfolhada

Minha raiz de pinho verde
Meu céu azul tocando a serra
Oh minha água e minha sede
Oh mar ao sul da minha terra

É trigo loiro, é além tejo
O meu país neste momento
O sol o queima, o vento o beija
Seara louca em movimento

Olhos de amêndoa, cisterna escura
Onde se alpendra a desventura
Moira escondida, moira encantada
Lenda perdida, lenda encontrada

Oh minha terra, minha aventura
Casca de noz desamparada
Oh minha terra, minha lonjura
Por mim perdida, por mim achada

Cavalo à solta

Ary dos Santos / Fernando Tordo
Fernando Tordo no festival RTP 1970 

Minha laranja amarga e doce, meu poema
Feito de gomos de saudade, minha pena
Pesada e leve, secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura

Minha ousadia, meu galope, minha rédea
Meu potro doido, minha chama, minha réstia
De luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa

Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo

Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura

Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma, amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo

Meu desafio, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura

Sono dos anjos

João Conchinhas / Linda Leonardo
Repertório de Linda Leonardo

Nunca me falaste dessa morada
Onde o corpo é tão leve como a brisa
Onde o tempo é coisa que não entendo
Onde não há caminho de regresso

Nunca me disseste que casa é essa
Onde as paredes são de brancas nuvens
Onde já não há dor, nem choro, nem tormento
Onde não há mentira, só verdade

Diz-me se é essa a morada 
Onde dormem os anjos
Aonde o corpo é tão leve
Onde não há caminho que nos volte
Diz-me se é essa a morada
Onde dormem os anjos
Aonde o tempo é terno
Porque eu não quero chamar-lhe morte

Lisboa sei-te de cor

Linda Leonardo / Marino de Freitas
Repertório de Linda Leonardo


Sou pregão duma varina 
Que atravessa esta cidade
E trago sempre comigo 
Memórias dum fado antigo
Que rasga a noite num grito
Que palavras que não digo

E trago comigo o fado
Tão sentido e tão cantado
Nas cordas duma guitarra
Sentei-me á beira da tarde
A ver chegar a saudade
Nesse barco sem amarras

Vestida de lua cheia 
Desde Alfama ao Bairro Alto
Enamorada do Tejo 
Venho á noite dar-te um beijo
Como se fosse deixar-te
De cada vez que te vejo

Vim para o fado e fiquei
E nos versos que cantei
Lisboa, sei-te de cor
Mais do que amor, é amar
Segredos do teu cantar
Ai Lisboa meu amor

Chamar fado à solidão

Tiago Torres da Silva / Marino de Freitas
Repertório de Linda Leonardo


Era uma canção que eu mal sabia
Era um coração que eu descobria
A soluçar... sob o olhar
De quem sem saber em conhecia

Esse coração, ai quem mo dera
Por dentro do meu coração à espera
Que a minha voz... desate os nós
Que unem o outono á primavera


Mas eu não queria ter cantado
Sem ter acolhido o fado
Dentro do meu triste coração;
Porém, se alguma vez o fiz
Foi por estar tão infeliz
Que fui chamar fado à solidão


Era uma mulher que em mim nascia
Quando uma guitarra me dizia
Que em tom menor... canta melhor
Quem souber da noite fazer dia

Foi um novo amor que aqui me trouxe
Eu digo que era amor, talvez não fosse
Só porque o fado... envergonhado
Disse que me amava e afastou-se

Só mais um fado

Jorge Fernando / Amadeu Ramim *fado zeca*
Repertório de Jorge Fernando

O frio da noite andou pela minha mão
Num rodopio de estrelas e luar
Doeu-me mais o frio da solidão
Que a mão teimosamente a querer gelar

Em mim coube-me apenas por memória
As dádivas do amor que me trouxeste
Sou livro que suspenso ao fim da história
Espera o final que ainda não escreveste

Quedei-me algures, cansados os meus passos
De tentar perseguir o pensamento
Os laços entre nós ficaram lassos
Frouxos, como o meu próprio lamento

Dá-me, pois, a ilusão d’uma só hora
D’um final suspenso e adiado
P’ra se acalmar o frio que me devora
Preciso de te ouvir só mais um fado

Pressentimentos

Tiago Torres da Silva / Pedro Rodrigues
Repertório de Linda Leonardo


Pressinto que há no meu peito
Um amor tão magoado
Que ás vezes, quando me deito
O fado sente o direito
De se deitar a meu lado

Pressinto uma madrugada 
Se dos teus olhos me acudo
E a minha alma cansada 
Parece não dizer nada
Mas em silêncio diz tudo

Pressinto que sopra o vento 
Na tua alma, á noitinha
E é nesse pressentimento 
Que sem saber, eu invento
Uma dor maior que a minha

Tenho o fado por instinto 
E a dor por condição
Por isso, não sei se minto 
Quando digo que pressinto
O teu, no meu coração

Mas dia a dia vou indo 
Sózinha, de rua em rua
E enquanto vou pressentindo 
A saudade vai unindo
A minha tristeza á tua

Bela adormecida

Letra e musica de Jorge Fernando
Repertório do autor


Olha, a calma, a alma
Bela adormecida
Vejam só, olhem só


Quinze anos, quinze dores 
Tantos e tão poucos anos
Perdeu-me em falsos amores 
Ganhou sérios desenganos

Põe sorriso ao pé da estrada 
Ergue mais a curta sala
Na esperança de que alguém cala 
Sem que a veja desnudada

Mas à noite, noite fora 
Seus olhos ganham marés
Salga-lhes o rosto que chora 
Os beijos de tantos Zés
Quinze anos, já os fez 
Na rua da estrada fora